Moraes Moreira: os encantos e desencantos do Carnaval da Bahia

O último Carnaval de Moraes Moreira foi em 2020, na Praça Castro Alves, berço da folia baiana, versada em música e poesia pelo poeta-cantor. Curiosamente, ali também foi onde tudo começou para ele. Dez anos antes de sua partida, este imortal da cultura popular contou a sua epopeia carnavalesca em ‘Sonhos Elétricos’ (Editora Azougue, 2010), livro de memórias sobre a festa-símbolo da cidade de Salvador.

A obra é uma verdadeira homenagem a Dodô e Osmar, considerados os inventores do Trio Elétrico, com os quais Moraes conviveu, aprendeu e produziu. Prosa, poesia, cordel e letras de músicas se unem para biografar o Carnaval pós-trio, o que de fato deixa a leitura ainda mais interessante. Histórias de músicas autorais que se tornaram icônicas no carnaval, como ‘Pombo-Correio’ e ‘Vassourinha Elétrica’, são descortinadas por crônicas curtas que se juntam a imagens coloridas de antigos carnavais. 

O trio, máquina de curtição “a serviço da paz e alegria” nas palavras de Moreira, é co-protagonista. Seus diferentes formatos, desde a Velha Fobica, passando pela Caetenave, e chegando aos modelos sofisticados da atualidade, são comentados em detalhes pelo artista, incluindo os rituais de saída. No Carnaval do Jubileu de Prata, no qual o trio completou 25 anos, foi levado à Colina Sagrada (Igreja do Bonfim) para executarem o Hino ao Senhor do Bonfim. É o sagrado e o profano que só se vê na Bahia.

‘Chame Gente’: o verdadeiro enxame

Livro ‘Sonhos Elétricos’

De Paganini a Catulo da Paixão Cearense, o repertório que fazia o desbunde da multidão misturava o erudito ao popular, com versões “trieletrizadas”. E foi de clássico em clássico que nasceu ‘Chame Gente’ (Moraes Moreira/ Armandinho), considerada um hino do Carnaval de Salvador, cuja letra faz uma brincadeira entre os bairros da capital baiana num paralelo com a folia. Seja no bloco, na pipoca ou no camarote, esse é um hit indispensável.

E foram muitos os sucessos criados por essa família de veia musical: Aroldo, Armandinho, André e Betinho, filhos de Osmar, participam desde o primeiro disco do conjunto ‘Trio Elétrico’, junto a Moraes, que se considerou adotado. Ele, inclusive, foi intitulado por Dodô e Osmar, como o primeiro cantor de trio, numa época em que ainda nem existia aparelhagem. “Mesmo que só fizesse mímica em cima do Trio, teria a meu favor o eco da multidão”, enfatiza.

Moraes também defende que os inventores do Trio também foram pioneiros na invenção da guitarra, e cita a história da criação do pau elétrico, feito com braços de violão e cavaquinho, com a junção de captadores na caixa acústica. Mesmo que haja uma grande discussão em torno desse invento, é fato que os soteropolitanos tiveram papel fundamental nesse nascedouro musical. Haja pioneirismo!

Segregação, não!

Nessa história de folia, nem tudo é confete e serpentina. Moreira também relata suas discordâncias quanto aos rumos do Carnaval de Salvador, principalmente sobre o impacto dos blocos pagos em detrimento das atrações pro folião pipoca. Além do apelo mercadológico, também havia uma ideia segregacionista e racista, pois eram admitidas “somente pessoas brancas e bonitinhas” nesses espaços, fato que gerou a instauração de uma CPI no início dos anos 90.

Moraes em 1982 no Carnaval. Foto: Arquivo CORREIO

Moraes também aponta o desprivilégio dos blocos afros, que saem em horários tardios na programação, e não possuem tanta visibilidade em relação a outras atrações. Por externar a suas discordâncias, o cantor passou a sofrer retaliações que dificultaram sua participação no carnaval baiano, do qual ficou “exilado” por certo tempo. Mas como o bom filho à casa torna, Moraes voltou a se apresentar na folia, tendo a companhia de seu filho, Davi Moraes.

Em 2023, o cantor será o grande homenageado do Carnaval de Salvador pelo Governo da Bahia. Para além da salvaguarda da sua memória e atuação, é preciso que se olhe para os apelos que Moraes fazia em vida. Um deles era o revigoramento da Praça Castro Alves, que ficou desprestigiada com o passar do tempo, e onde é o verdadeiro berço da folia sem cordas, plural e democrática. Que seja feita a vontade do poeta, e o povo volte a balançar o chão da praça!

Sonhos Elétricos
Moraes Moreira
Editora Azougue, 224p.
R$36,90

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Lucas de Matos

Olá! Eu quero te dar as boas-vindas à minha coluna. Sou um comunicador baiano que ama falar sobre gente, e por aqui você vai encontrar muito assunto sobre cultura, comunicação, dicas de leitura, e mais. Sou autor de 'Preto Ozado', livro que já vendeu mais de 1.600 exemplares e se tornou um minidocumentário. Viajo pelo Brasil em atividades literárias, participando de festas como FLICA, FLIP e FLIPELÔ. Falo sobre cultura para meus 22 mil seguidores no Instagram! Vamos conversar? 💬

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