Doutor Gama: o filme de herói negro que a gente queria

Guilherme Soares Dias

“Quando o escravo mata seu senhor está agindo em legítima defesa. Meu ódio é legítima defesa”. A frase atribuída a Luiz Gama resume o filme “Doutor Gama”, de Jeferson De, que estreia hoje (5) nos cinemas. Baseado em fatos reais, o longa conta a história daquele que foi o maior abolicionista brasileiro, tendo libertado mais de 500 pessoas escravizadas. Advogado, jornalista, poeta, Gama teve uma vida digna de cinema. O roteiro de sua vida real é cheio de reviravoltas e merecia um filme a altura. E temos: Doutor Gama tem DNA preto (atores, equipe e direção), é emocionante, forte, bem amarrado e afrontoso. “Se é difícil manda o preto fazer por você”, é uma das frases que vemos o personagem dizer.

Gama tem uma história tão rica que partes da sua vida ficam de fora, como a atuação como jornalista. Os escritos aparecem quando conquista a esposa e numa carta que deixa para o filho quando faz uma viagem. Parte do roteiro narra o julgamento de um homem escravizado que matou seu senhor. Se na vida real, a história conta que o homem foi morto em linchamento por senhores de escravos que invadiram sua cela, na obra a história termina diferente. Mas o cinema tem essa licença poética.

É o filme de herói preto brasileiro que as pessoas negras ansiavam, sem exotificação, subalternidade ou qualquer outro estereótipo que os brancos costumam nos dar. “Por vezes, eu tinha insights de estar retratando um super-herói. De volta com os pés no chão, nosso desafio foi estabelecer essa passagem de forma suave”, conta Jeferson De.

Cesar Melo, que interpreta Gama na idade adulta, conta que receber o convite para interpretar um herói negro foi como um sonho de infância que nem sabia que tinha. “Eu não conheci Gama na minha infância porque ele e sua história foram propositalmente apagados, sua vida não estava nos meus livros didáticos, mas eu tenho certeza de que se eu tivesse lido sobre esse homem e sua grandeza, se alguma de minhas professoras tivesse me contado a biografia desse herói admirável, eu teria sonhado ser ele”, ressalta.

Com o filme esse imaginário é construído. Luiz Gama aparece na tela bonito, forte, justiceiro e irônico como é descrito em seus próprios escritos. A fama de herói não o livra de sofrer racismo na sociedade, nem a revolta de outros negros que acreditam que a justiça com as próprias mãos era um caminho mais viável para libertação do que as leis e a escrita, armas usadas pelo personagem título. Gama ouve coisas como “você é praticamente um membro da família”, é comparado a “bode” (xingamento comum a pessoas negras na época), entre outras intempéries.

Advogado

O filme começa e termina com as cenas de julgamento do homem escravizado que Gama defende como advogado. “Estamos aqui para julgar as próprias leis”, afirma ele no tribunal fazendo referência a uma legislação escravocrata redigida por pessoas brancas que não consideravam as pessoas negras dignas do direito. O começo da sua vida em Salvador também é mostrado. Jeferson De conta que a recriação do navio negreiro foi uma das cenas que mais o marcou. É nele que Gama é transportado de Salvador para o Rio após ser vendido como escravizado pelo pai para pagar uma dívida de jogo.

Uma cena famosa na vida de Gama é deixada de fora: quando ele vai ser vendido como escravizado e é rejeitado por ser baiano. Isso porque, naquele século 19, baiano era sinônimo de revoltoso, já que lideravam várias rebeliões pró-abolição. No filme, quando o jovem ganha a liberdade ao provar que nascera livre, recebe também sapatos, uma espécie de símbolo de humanidade que só os libertos podiam ostentar.

Filme

Um longa com atores negros pouco conhecidos pelo grande público, mas com carreiras dedicadas a fazer personagens marcantes fora da TV. Samira Carvalho, Sidney Santiago, Mariana Nunes, Cesar Melo aparecem com boa caracterização e atuações impecáveis. Zezé Motta faz uma participação especialíssima como mãe de Claudina, a esposa de Gama. O filme chega as telas poucas semanas depois de Gama receber o título de doutor honoris causa pela USP. No dia 21, o Guia Negro organiza uma caminhada em São Paulo que vai contar a história de Luiz Gama. As Obras Completas de Luiz Gama também serão lançadas nos próximos dias pela editora Hedra. Serão dez volumes com 750 textos, mais de 600 deles inéditos, segundo a editora.

Com roteiro de Luiz Antônio, patrocínio SABESP, apoio Mattos Filho, e trilha de Tiganá Santana “Doutor Gama” busca evidenciar a história deste advogado, jornalista, abolicionista e poeta, para um Brasil que ainda tenta apagar os fatos de seu passado. O filme deixa o gosto de quero mais. Gama merece uma série da Netflix ou até mesmo da Globo. Há muitas histórias e nuances que ainda podem ser explorados. A obra de Jeferson De é um ótimo primeiro capítulo dessa narrativa no audiovisual.

O filme está disponível nos seguintes cinemas:
São Paulo – Belas Artes, Espaço Itaú Augusta, Reserva Cultural.
Rio de Janeiro – Estação Net Gávea, Estação Net Rio, Reserva Cultural.
Manaus – Casarão
Curitiba – Cine Passeio
Brasília – Espaço Itaú Brasília
Salvador – Espaço Itaú Salvador
Balneário Camboriú – Arthousebc
Belo Horizonte – UNA Cine Belas Artes

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Guilherme Soares Dias

Jornalista, consultor, empreendedor e amante de viagens

Artigos: 37

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