Na décima edição, evento teve atrações de música, cinema, teatro, rodas de conversa e artistas internacionais
Guilherme Soares Dias
Em 1995, quando a morte Zumbi dos Palmares completou 300 anos, foi criado em Belo Horizonte o Festival de Arte Negra (FAN), com a proposta de celebrar a cultura e história negra e reunir artistas locais, nacionais e internacionais. Naquela edição se apresentaram artistas como Tim Maia, Milton Nascimento, Itamar Assunção e Luiz Melodia. Depois de um hiato de oito anos, o FAN voltou a ocorrer em 2003 até que em 2007, virou política pública. Desde então, está previsto em lei e obrigatoriamente precisa ser realizado pela prefeitura a cada dois anos. Em 2019, o FAN chegou a sua décima edição, como o maior e mais longevo festival de cultura negra do país.
Dos shows de abertura com Mateus Aleluia, de encerramento com BNegão, passando por filmes, peças de teatro, espetáculos de dança, residências artísticas, aulas públicas e oficinas, o festival se espalhou entre os dias 18 e 24 de novembro por diferentes pontos da capital mineira, ocupando a Funarte, o Palácio das Artes, Cine Theatro Brasil Vallourec e o CentoeQuatro, onde ocorriam as festas do evento, além do Viaduto Santa Tereza, tradicional ponto de encontro da negritude da cidade, que frequenta a parte de baixo da famosa estrutura adornada por arcos para ver batalhas de rap e o samba da meia noite, que também integrou a programação.
Para além das apresentações artísticas, o festival promove encontros e conexões. O maestro da Orkestra Rumpilezz, Letieres Leite, resumiu esses diálogos afirmando que as “trocas nas artérias secundárias são a maior contribuição” do festival. É o que a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro chama de “conspiração” e diz ser necessário para a geração atual ir além da estética e avançar nas pautas antirracismo. Foram mais de cem atrações. Muitas inéditas e elaboradas para o festival. Apresentações com nível de elaboração alto e ao mesmo tempo acessível para todos os públicos. Mesmo com raras atividades ao ar livre, o festival era de graça e atraía todo tipo de público. Os artistas mineiros criticaram a ausência de mais atrações locais.
O evento trouxe para os palcos a resistência em formato de cultura. “O povo preto produz o tempo todo. Nós produzimos a arte invisível que é a arte da sobrevivência, que assegura a nossa existência. Se não encontramos espaço nos festivais tradicionais, criamos o nosso próprio espaço, que reúne o povo preto de todas as partes do Brasil celebrando a nossa forma de dizer que existimos e resistimos”, ressalta a jornalista e influenciadora digital Tia Má, que apresentou seu stand up comedy e participou de uma roda de conversa durante o evento.
Já o cantor, compositor e multi-instrumentista Melvin Santhana, que se apresentou no projeto “Orange Lady” que homenageou o cantor, ator e dançarino mineiro Markus Ribas, lembra que Minas não precisa buscar referências em nenhum lugar, já que é palco das congadas e de uma cultura negra própria. “Faz todo sentido ter um festival de arte negra estabelecido aqui em BH. Com modéstia, eles compartilham esse festival com outras localidades. Mas eles têm todos os fundamentos. Talvez não tivesse outro lugar tão legítimo para o FAN ocorrer”, ressalta.
O Guia Negro elegeu cinco momentos marcantes do festival:
1 – A saga travessia e um defeito de cor – Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz (BA)
A Orkestra existe há dez e mistura “jazz com macumba”. Na apresentação, trouxe uma amostra instrumental das músicas feitas pela escritora moçambicana Paulina Chiziane ao ler o livro “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. A apresentação potente encheu o teatro do Palácio das Artes e registrou musicalmente a travessia das pessoas que foram escravizadas na África para a América. “Ao ouvir as músicas as pessoas conseguem ver navios saindo, escravos se jogando no mar. Vamos tocando com essa dor. Essa é uma apresentação inédita para o FAN”, contextualiza o maestro Letieres Leite. Durante o show, ele também homenageou o cantor Gilberto Gil com a música “Professor luminoso”.
2 – Dzikudzikui-Abiku Abiikus – Va-Bene Fiatsi (Gana)
O nome da performance significa nascido depois do nascido-morto e convida as pessoas a refletirem. Estiradx no chão, sem roupa, envoltx de argila Va-bene rasteja acorrentx. X artista que se classifica como não binária e gosta de ser chamada pelo pronome shit, uma mistura de she, he e it que cria a palavra “merda” em inglês, provoca o público ao colocar fogo nas roupas jogadas no chão e ir aumentando-o com pneus que vão se decompondo e gerando uma fumaça densa, que vai incomodando e fazendo o público se movimentar. Ela carrega o mundo consigo. Vai deixando rastros por onde passa e criando uma angústia que gera aflição e choro. Ao fim, Va-Bene lembra que em Uganda gays foram queimados em 2014 apenas por serem quem são. “No passado eram os brancos contra negros. Hoje são negros contra negros. Se você é LGBTQI+ é considerado demônio e merece ser queimado”, afirma. Shit artista lembra que a branquitude vai além da cor e diz respeito à mentalidade; lamenta que alguns se tornaram “negros brancos”, e diz que qualquer um de nós pode se tornar vítimas de atrocidades como a que retrata.
3 – Embarque Imediato – Celebração aos 80 anos de Antônio Pitanga
Ao lado dos filhos Rocco e Camila (por meio de vídeos e gravação de voz), Antônio Pitanga fez duas apresentações do espetáculo “Embarque Imediato” durante o FAN. A peça narra o encontro entre um jovem negro doutorando brasileiro e um senhor africano, em uma sala de aeroporto internacional, onde ambos se encontram retidos por problemas com seus respectivos passaportes durante uma conexão de voo. Confinados (ou encarcerados) na sala de segurança do aeroporto, o encontro faz com que os dois tenham acesso a informações que mudam suas vidas. “Essa peça tem colocado o dedo na ferida no sentido de levantar uma questão que é: de onde eu vim? Que identidade eu tenho? Minha origem está em que país do continente africano? Isso diz respeito ao povo brasileiro, já que 55% da população é de pretos e pardos, então é exatamente sobre a diáspora que essa peça trata. Acho que é uma discussão importante e oportuna, e é uma discussão que eu proponho desde que me entendo por gente. Durante 80 anos da minha vida, incluindo os dois que morei na África, tenho buscado essa resposta, de qual África eu venho, qual minha cultura”, destaca.
4 – Samba da Meia Noite (MG)
O Samba da Meia Noite, grupo de samba de roda que há sete anos se reúne no Viaduto Santa Tereza em eventos gratuitos para celebrar o gênero e a cultura negra, marcou presença no festival. Formado por percussão, sambadores e sambadeiras que trazem em seus corpos a musicalidade, heranças e vivências ancestrais. O samba é uma ocupação urbana que ocorre uma vez por mês de um palco que também abriga batalhas de rap e manobras de skatistas. O coordenador do grupo, Jefferson Gomes, cresceu no município mineiro de Almenara, na bacia do Rio Jequitinhonha, na divisa com a Bahia, onde as cantorias de beira-rio (as chulas e os benditos) eram entoadas incansavelmente pelos moradores da região. Ele promove um repertório de sambas com intenção de reafirmar, sustentar e divulgar a riqueza cultural brasileira com voz, corpo e tambor.
5 – Documentário “Milli’s Awakening” (Alemanha)
Dirigido por Natasha A. Kelly (foto), o documentário retrata Nabu, nascida em 1955, que é uma fabricante de máscaras, Naomi, de 1965, um artista e cineasta, Maciré, de 1995, estudante e artista. As três são mulheres negras vivendo na Alemanha e trabalhando com arte. Suas narrativas pessoais e biográficas mostram como a extensão da arte pode ser um alívio para o isolamento social e a opressão. Nas entrevistas com a diretora, elas contam como superaram os estereótipos coloniais e criaram suas próprias identidades enquanto mulheres negras. Natasha está passando uma temporada em Salvador, em intercâmbio pelo Instituto Goethe e esteve em Belo Horizonte para comentar o filme. Apaixonada pela capital baiana que “todos os negros deveriam visitar pela sua energia e força”, ela ressaltou a importância de um evento com o FAN que “promove todas as artes da América” e a satisfação de mostrar um filme que retrata a comunidade negra na Europa “invisibilizada e estigmatizada”.
*O repórter e o fotógrafo viajaram a convite do festival
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