Guilherme Soares Dias
Uma multidão se concentra na Rua Gregório de Matos, no Pelourinho, em Salvador, no domingo de carnaval (23). É onde fica a sede do bloco afro Filhos de Gandhy, fundado em 1949, um ano depois da morte do líder indiano Mahatma Gandhy, que até hoje tem sua mensagem de paz levada para a folia. Homens vestidos de azul e branco formam um mar de gente ladeados pelos seguidores do bloco que querem acompanhar a tradicional saída e o padê (pedido de licença e agradecimento) para Exu, entidade dos caminhos que rege o carnaval.
A roupa do Gandhy é composta por uma saia, uma bata, colares azul e branco e um adorno de cabeça que é costurado e ajustado em cada participante. E eles são cerca de 5 mil. E uma toalha que os coroa e ganha um broche também azul e branco no meio da testa. A tradição diz que para ganhar um colar é preciso dar um beijo em um Gandhy. Já a alfazema, que eles carregam consigo, é espirrada na mão de cada pessoa que pedir. Formado apenas por homens, o bloco já foi acusado diversas vezes de machista. O bloco Filhas de Gandhy nasce também como uma tentativa de resposta, mas tem visibilidade muito menor. O grito de “ajayô” é a marca em comum. Vem de uma expressão africana que significa sopro de saudação a Oxalá e equivale a “se Deus quiser”.
Prevista para às 14h, somente por volta das 16h as cornetas começam a tocar e anunciam as pipocas que são jogadas a partir de um cesto de palha na multidão. Os homens saem pela porta da sede e seguem poucos metros para baixo no Largo Pelourinho, entre a Fundação Jorge Amado e a Igreja Nossa Senhora Rosário dos Homens Pretos, bem em frente ao sobrado onde o cantor Michael Jackson gravou o famoso clipe ao lado do Olodum.
Nesse lugar já carregado de histórias e energia abre-se uma roda e se oferece o padê para Exu. Apesar de ser um ritual na rua, aos olhos da multidão, poucos conseguem ver de fato o que é feito dentro da roda. “Que comida é oferecida para Exu?”, questiono. “Não posso revelar”, responde com um sorriso de canto de boca um participante que guarda os segredos da religião. As pombas são soltas e a está dada a largada para os toques do afoxé, o candomblé trazido para a rua, com todos os seus rituais, vestes, adereços, danças e cânticos. O agogô corre solto e os tambores e atabaques começam a subir a ladeira em direção ao circuito do Campo Grande.
Uma senhora negra de 84 anos acompanha o Gandhy todos os anos. Em 2020, ela chega ao lugar do padê ajudada por uma muleta e pelo marido que desfilou no bloco na década de 80. O pequeníssimo coque arrumado milimetricamente no alto da cabeça e o vestido estampado denunciam que aquele é um dia especial para ela. “Prazer em rever. Ótimo carnaval”, deseja na nossa rápida troca de palavras em meio à multidão de gente.
Apadrinhado pelo cantor Gilberto Gil desde a década de 70, o bloco Filhos de Gandhy desfila no domingo e na terça-feira (25) pelo centro e na segunda de carnaval pelo circuito Barra-Ondina. A falta de verba que vem acometendo os blocos afros faz com que a diretoria estude sair apenas dois dias na folia de 2021. Em 2020, o tema do bloco foi Omolu – Obaluaê, deuses da doença e da cura. Aos poucos, a tradição vai dando espaço para trios (financiados pelo governo da Bahia) de artistas de fora e que pouco tem a ver com o carnaval local.
Feijão. Durante as festas de largo, as pessoas costumam oferecer feijão em suas casas. No carnaval não é diferente. A loja Katuka Africanidades oferece todos os domingos de saída de Gandhy uma feijoada, que custa R$ 20. Por lá, muitos homens vão se arrumar e comprar mais adereços ou ajustar seu torso na cabeça. A loja nasceu dentro do Edifício Themis, no Pelourinho, onde ficavam várias outras que vendiam artefatos de candomblé.
Com a decadência do local, apenas uma resistiu e a Katuka mudou de lugar para a Praça da Sé. “Muitos homens que saíam no Gandhy eram de candomblé e frequentavam lá”, diz Renato Carneiro, empresário que pensa e faz moda. Renato nunca conseguiu sair no carnaval com o bloco que adora, mas tem uma máxima: “Todo homem negro fica bonito com a roupa de Gandhy”, afirma, lembrando que há uma política de destruição do tradicional carnaval negro da cidade. A torcida é que apesar das dificuldades, o bloco resista e continue propagando a paz pelo carnaval de Salvador. Ajayô!