O sorriso negro atemporal de Dona Ivone Lara

A arte pretende, entre seus múltiplos objetivos, contar a história de um tempo. Ao realizar tal intento, certas obras tornam-se referências atemporais. Esse é o caso do álbum ‘Sorriso Negro’ de Dona Ivone Lara, lançado em 1981, e analisado em livro escrito por Mila Burns, que integra a série ‘Livro do Disco’. Em ‘Dona Ivone Lara: Sorriso Negro’ (Cobogó, 2021), a jornalista enfatiza a importância do álbum para a luta antirracista no Brasil.

Embora a dama do samba refutasse o hasteamento de uma bandeira de luta, ela foi a porta-bandeira de sua própria história de vanguarda. Enfermeira e assistente social de profissão, D. Ivone buscou a estabilidade financeira para então se dedicar à carreira artística, num ambiente de proeminência masculina. O samba, presente em sua vida desde tenra idade nas rodas em casas de parentes, só tornou-se protagonista após sua aposentadoria aos 56 anos, provando que nunca é tarde para realizar um sonho.

E este “Sonho Meu” foi tecido de realidades consideráveis. Uma delas é que D. Ivone foi a primeira mulher a compor um samba-enredo oficial intitulado ‘Os cinco bailes do Rio de Janeiro’ em parceria com Oliveira e Bacalhau, em 1965. Assinava diversas melodias e composições que se tornaram sucessos absolutos, e seguem obrigatórias no repertório de sambistas. Alguns desses ‘hits’ estão presentes em ‘Sorriso Negro’, divisor de águas em sua carreira.

Uma cor de respeito

‘Negro é uma cor de respeito/ negro é inspiração’: a composição de Adilson Barbado, Jorge Portela e Jair do Cavaco, que dá nome ao álbum, já demarca a valorização da existência negra de maneira simplista e altiva, como quem inspira autoridade só por sua presença, tal qual Dona Ivone Lara. A música corporificou-se em seu canto de tal forma que muita gente pensa ser ela é a autora da letra. 

Esse respeito já vem estampado na capa que traz, numa moldura, o rosto da cantora em close, com um batom vermelho a pintar seu sorriso aberto e liberto. Numa época de busca por fortalecimento da identidade negra no Brasil, uma imagem como essa é a representação de um novo imaginário, sobretudo para as mulheres negras que, segundo Mila, eram tidas como tias ou musas dos sambistas, mas não como cantoras ou protagonistas de seu próprio sucesso.

Autora Mila Burns segurando o livro

Sem tom panfletário, a letra pede igualdade de direitos, emprego e dignidade para pessoas negras. Um verdadeiro hino antirracista, cantado até em missas de igrejas em Salvador, como a Rosário dos Pretos e Bonfim. Num país fortemente marcado pelo mito da democracia racial, onde até no censo a cor negra era atenuada nas designações de raça, essa música esquadrinha um anseio de visibilidade da época, que continua sendo extremamente atual.

Bahia, amor e ancestralidade

Ainda que carioca, Dona Ivone nutria uma grande admiração pela Bahia. O estado está presente tanto nos versos de ‘Alguém me Avisou’ (Quando eu voltar da Bahia/ Terei muito o que contar) e ‘De Braços com a Felicidade’ (Me mandei para o Rio/ Para ver se esquecia/ O amor que eu deixei lá na Bahia), quanto na participação de Maria Bethânia em ‘Sereia Guiomar’, música que abre o disco.

O amor também é outro assunto sobre o qual Dona Ivone versa. ‘Tendência’ em co-autoria com Jorge Aragão, foi regravada por nomes como Beth Carvalho, Emílio Santiago e Fundo de Quintal. Em ‘Unhas’ e ‘Nunca Mais’ o tema reaparece para mostrar sua faceta agridoce, e que gera bons sambas. Já em ‘Axé de Ianga’ o jongo viceja para lembrar as histórias de antepassados que lutaram contra a escravidão, fazendo uma ode à ancestralidade.

Tendo em vista esse cenário, há como negar o ativismo da intérprete? Mesmo sem rotular, Dona Ivone já munia sua arte de relevância social, e Sorriso Negro é a prova disso. Nas palavras de Mila, “seus 38 minutos possuem uma urgência que viaja pelos séculos de história da música brasileira tecendo religiões, origens, as lutas das mulheres, injustiças políticas, o racismo, o amor, o samba, a MPB, as tradições e as inovações”. Ouça o disco e leia o livro!

Dona Ivone Lara: Sorriso Negro
Mila Burns
Cobogó, 2021
168 p.
R$53

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Lucas de Matos

Olá! Eu quero te dar as boas-vindas à minha coluna. Sou um comunicador baiano que ama falar sobre gente, e por aqui você vai encontrar muito assunto sobre cultura, comunicação, dicas de leitura, e mais. Sou autor de 'Preto Ozado', livro que já vendeu mais de 1.600 exemplares e se tornou um minidocumentário. Viajo pelo Brasil em atividades literárias, participando de festas como FLICA, FLIP e FLIPELÔ. Falo sobre cultura para meus 22 mil seguidores no Instagram! Vamos conversar? 💬

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