“Gosto de apartamento/ Mas já é hora de andar/ Vamos pra rua!”. Ao ouvir tais versos da Banda Maglore, eu me identifiquei de imediato. É uma louvação a esses espaços de trabalho, farra, perigo, inspiração, festa, seriedade e brincadeira que são as ruas, pelas quais tenho fascínio. E nas andanças pelas vias da literatura descobri outro rueiro apaixonado: o escritor Luiz Antonio Simas, autor do livro ‘O Corpo Encantado das Ruas’ (Civilização Brasileira, 2019).
A obra, que já passa de dez edições, é uma verdadeira carta de amor e um chamado para um reencantamento da vida, num tempo de pescoços curvados para o celular, infâncias de playground, fobia das multidões, ansiedade crescente e depressão. Nos 42 textos curtos e independentes, todos introduzidos por “AS RUAS…”, o escritor discorre sobre costumes, cultura, civilização, intolerância religiosa e outros temas, num texto ora jocoso, ora vigoroso, mas sempre assertivo e didático.
Ancestralidade
O autor vê as ruas como verdadeiras bibliotecas, onde se vive ao passo que se aprende, sendo uma maneira de desmistificar o conhecimento circunscrito às salas de aula. As pedagogias forjadas no asfalto, na lama e no capim, são indispensáveis. E a referência maior para o aprofundamento do tema vem da própria ancestralidade: é com Exu, as pombagiras e os encantados que aprenderemos a não caminhar desbussolados nas vias, becos e vielas.
“Bombogira, pombagira, sabe exatamente o que faz com o corpo: tudo aquilo que quiser fazer. Nós, que na maioria das vezes somos ensinados a ver no corpo o signo do pecado, é que não temos a mais vaga ideia sobre como lidar com ele. As pombagiras gargalham para as nossas limitações, enquanto dançam na rua”.
As epígrafes, marca da escrita de Simas, são bônus para complementar o conhecimento pela cultura afro-brasileira. Destacam-se pontos de terreiro, sambas de roda, pagodes e samba-enredos que trazem o fio condutor da prosa, e são facilmente achados numa pesquisa rápida pela internet. O autor também cita filmes, livros e personalidades que aumentam as possibilidades de uma leitura repleta de referências e hiperlinks.
Salvar a rua
“A rua concebida como lugar de encontro anda perdendo de lavada para a rua como lugar de passagem, marcado pela pressa e pela violência urbana”, ressalta o autor em um dos textos, trazendo à tona uma conversa que poderia passar despercebida, assim como as miudezas de um cotidiano rueiro. Afinal, pessoas conversando amenidades, sentadas em banquinhos na porta de casa, já se tornou um cenário bucólico numa sociedade da velocidade e da produtividade que adoece.
Mesmo sendo um cenário de complexidades em que alguns corpos sucumbem pela violência enquanto outros praticam esportes, trabalham enquanto outros dançam, dormem enquanto outros passeiam, as ruas seguem sendo mestras no ensinamento da arte de saber viver. No gingado das rodas de capoeira, no swing das rodas de samba, nos dizeres das rodas de conversa, giram e circulam aprendizados.
É preciso reforçar a ideia que podemos tecer o encantamento e a vivacidade das ruas. Seja pela doçura nas sacolinhas das festas de São Cosme e Damião (estampada na capa do livro), pela pedagogia dos tambores, pelas filosofias dos botequins com seus ovos cozidos e “sacanagens”, pela pipas que correm livres no vento, ainda que as crianças corram com menos liberdade nas ruas da vida. É uma leitura que nos lembra que é hora de levantarmos do sofá. Vamos pra rua!
O Corpo Encantado das Ruas
Luiz Antonio Simas
Civilização Brasileira, 2022, 11ª ed.
176 p.
R$43,90
LEIA MAIS: