Mulheres negras viajam para a Colômbia: uma prece pelas nossas vidas

Por Valéria Lourenço*

“Eu seguro sua mão na minha, para que juntas possamos fazer aquilo que não posso fazer sozinha”. Essas foram as palavras sugeridas pela poeta Elizandra Souza para que falássemos em uma só voz. E assim fizemos nós! Um pouco mais de 20 mulheres negras, de vários estados do Brasil, de mãos dadas, pelas ruas de Cali, na Colômbia, em uma grande ciranda. Repetida e entoada em coro, a frase virou uma prece. A cidade, tão festiva, ficou em silêncio, como se gritasse respeito, e nós continuamos ali, de mãos dadas, a sorrir umas para as outras.

A famosa frase de Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, ecoou em mim no último agosto. Eu estava em viagem por Cali, onde pude encontrar essas mulheres negras brasileiras que foram até lá participar do 17º Festival de Música do Pacífico Petronio Álvarez.

O festival, que homenageia Petronio Álvarez, músico nascido em Buenaventura (1914), Pacífico colombiano, e falecido em Cali (1966), traz, além de shows com bandas de músicas tradicionais, comida, bebida, moda e palestras sobre a história e a memória afro-colombiana. Essas mulheres faziam parte de um grupo de viajantes organizado por Rebecca Aletheia, a quem chamo carinhosamente de embaixadora das mulheres negras viajantes pelo mundo. E ali conheci mães, professoras, empreendedoras, dançarinas, estudantes, que sonham, que viajam e que cuidam dos seus, mas também de si.

Ao falarmos de mulheres negras que se movimentam em uma sociedade penso, principalmente, nesses corpos que se deslocam por diversos territórios. E agora peço licença para me referir a diferentes mulheres. Minha bisavó, Joana Correia, que saiu do Ceará para tentar a vida em Minas Gerais e, em seguida, se deslocou até o Rio de Janeiro. Carolina Maria de Jesus, nossa grande escritora, que também sai de Minas Gerais com os filhos e chega até São Paulo, onde cria raízes. Conceição Evaristo, outra escritora brasileira, sai de Minas para o Rio de Janeiro. Posso falar de mim também que, retirante às avessas, deixei o Rio de Janeiro para fincar os pés no sertão cearense.

No entanto, essas mulheres que encontrei não foram até Cali “tentar a vida”, seja lá o que isso signifique, como nossas mais velhas. Estavam ali passeando, dançando, provando novos sabores, conhecendo pessoas, esbanjando charme, beleza. E elas se sentiam em casa. Afinal, se a Colômbia é o segundo país da América Latina com a maior quantidade de negros, ficando atrás apenas do Brasil, Cali é uma das cidades mais pretas, a porta de entrada e saída de cidades do Pacífico como Guapi, Buenaventura, lugares com a maior parte de sua população afro-colombiana.

Eu estava viajando sozinha, mas nossos caminhos se cruzaram por lá. E, num dos dias em que nos juntamos para fotografar em diversos pontos da cidade, paramos Cali. Os carros, as pessoas, os vendedores, todos queriam ver aquelas mulheres negras, vestindo roupas coloridas e com uma imensa alegria de viver. Não estávamos mais no lugar do servir, como sempre encontro as mulheres negras, mesmo que eu esteja viajando em países com imensa maioria preta.

O corpo que se desloca para fazer turismo ainda é um corpo branco e, por isso, causamos tanto espanto. Como uma mulher negra e iniciando minha caminhada como viajeira (viajante e mochileira), foi muito importante e impactante estar ao lado de tantas mulheres parecidas comigo, tanto na pele quanto nas histórias e vivências do ser mulher negra brasileira.

Ainda na Colômbia, em Santa Marta, a primeira cidade da América, visitei o Museu del Oro Tairona, antiga Casa de la Aduana, onde há uma parede estampada com os nomes dos primeiros “desbravadores” da Colômbia. Todos homens. Todos europeus. Ou seja, por muitos séculos, o viajar, nomear, classificar e hierarquizar o mundo era um poder que estava nas mãos dos homens brancos.

Mas o que vivi em poucos dias com essas manas me mostrou que nosso desejo é outro, assim como Zizi, de 70 anos, a matriarca do grupo, que estava em sua primeira viagem internacional e se emocionou muito em contar esta história, nosso desejo é que mulheres negras como nós continuem a se movimentar. Quem sabe assim possamos criar novas línguas, comidas, bebidas e cores. Nos banhar em outros rios, conhecer novas cascatas, nadar em águas tranquilas, mergulhar com peixes nunca antes vistos, sorrir em segurança para as pessoas na rua, entrar e sair de uma loja sem ser importunada, dançar até o dia amanhecer.

Que a nossa prece que ecoou pelas ruas de Cali siga agora dentro de cada uma de nós a plantar sementes em mulheres negras de todo mundo e que esse deslocamento não precise ser somente para outro país, ou para outro estado. Que possamos reinventar e reimaginar a vida de mãos dadas umas com as outras na nossa rua, no nosso bairro, em nosso trabalho, em nossa casa, em nossos corpos.


*Valéria Lourenço é mãe, viajante, escritora, professora do IFCE campus Crateús, doutoranda em literatura Comparada pela UFC

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Redação

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