Padre Julio Lancellotti, o amigo do povo de rua

Julio Lancellotti, vigário episcopal da Pastoral de Rua da Arquidiocese de São Paulo, conta como sua convivência junto à população de rua gerou escolhas e comprometimentos, e questiona conceitos da sociedade
Por Guilherme Soares Dias*

Amigo. É o que o padre Julio Lancellotti busca ser para as pessoas que vivem na rua. Um homem disponível para ouvir, dar vazão a anseios e ajudar a construir respostas para a situação em que elas se encontram. Referência junto a essa população, o padre diz que não faz um trabalho, e sim, promove uma convivência. “Eu me aproximo deles. E a convivência gera um comprometimento, que te leva a escolhas. É um caminho sem volta…”.

Antes de ser padre e questionador, Julio é um homem de 68 anos, de fala mansa e acolhedora. Quando eu digo que a reportagem é para uma sessão chamada “Em nome do bem”, ele faz sua primeira intervenção: “Me chamou a atenção essa coisa de pessoas que fazem o bem. O sentido de bem é muito dúbio. Para alguns, dependendo da posição em que estão, o que eu faço é o mal. Não é todo mundo que acha que defender direitos humanos é o bem. Há quem ache que isso é o mal, que é ineficaz e que não leva a nada…”

A convivência dele com as pessoas em situação de rua começou há 35 anos. A proximidade se tornou algo mais formal dentro da igreja quando foi criada na Arquidiocese de São Paulo uma pastoral para a população de rua, da qual ele é o vigário episcopal. “É uma figura jurídica eclesiástica, que exerce essa função em nome do bispo”, explica. A causa que ele milita traz até hoje certo espanto, uma vez que nem todos se sentem muito à vontade com os moradores de rua. O sacerdote explica que mesmo dentro da igreja existe uma mentalidade vertical e poucas concepções mais horizontais de compreensão do fenômeno. “Muita gente diz que eles estão na rua porque querem. Essa é uma forma de compreensão diferente da do Papa Francisco, que acredita que é a lógica do sistema que produz ‘descartáveis”.

“O que leva essas pessoas à rua?”, indago. Julio responde bem ao seu estilo provocador: “Não tem uma resposta só. É a mesma coisa que nos faz perguntar: ‘o que leva tanta gente a trabalhar?’. Nesse sistema que escraviza e oprime, por que as pessoas vão? A chegada na rua tem uma história. Ela é feita de sucessivas perdas. E algumas pesquisas apontam como problema de relacionamento do grupo familiar”. Ele conta que é mais fácil achar a família dessas pessoas quando morrem do que quando estão vivas. “O morto, de certa forma, é inofensivo. Parou de encher o saco, não vai mais beber e ficar na porta de ninguém. Geralmente tem filhos, companheira…”, diz. Quando o Ricardo Oliveira dos Santos, catador de materiais recicláveis, foi morto pela polícia em Pinheiros, em julho, o padre teve uma longa conversa com a mãe dele. “Ele era um ponto fora da curva. A família era evangélica, todos trabalhando, organizados. E o Ricardo vivia outra forma de vida”, compara.

Ao longo dos anos, o perfil dessa população foi mudando. Cresceu o número de jovens, aumentou o de mulheres, de grupos familiares e a população LGBT ficou mais evidente. Espalhados pela cidade, eles se concentram no centro, mas como ressalta o padre, São Paulo é multicêntrica e, assim, há grande presença de moradores de rua em regiões como Santana, Santo Amaro, São Matheus e Lapa, entre outras, além do centro histórico. Segundo o Censo da População de Rua, essa parcela dos paulistanos aumenta na mesma proporção do crescimento demográfico da cidade, que com 12 milhões de habitantes, tem cerca de 22 mil pessoas na rua. “É um índice pequeno em relação à população geral. Mas são pessoas que, pelas condições de desumanização, de violência e de exposição, chamam muito a atenção. Quem é que vê os que estão na rua e não se incomoda? Dificilmente dá para ficar indiferente. Ou tem ódio ou tem empatia. Muitos não são indiferentes, mas têm raiva, medo e nojo”.

No Brasil, o Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada (Ipea) estima que existam cerca de 100 mil pessoas vivendo na rua, a maior parte nas grandes cidades. A crise econômica que o país enfrenta é um dos fatores que têm levado mais pessoas a essa situação. De acordo com o padre, hoje há uma grande migração de pessoas do Rio de Janeiro para São Paulo, já que as condições de atendimento na capital paulista são consideradas melhores.

O padre é pop

Julio Lancellotti é vigário na Arquidiocese de São Paulo

Meu primeiro encontro com o Julio foi numa livraria católica com publicações cristãs e santos à venda. Ele é um homem careca, de óculos e cabelos brancos, bastante atento ao celular. Usa relógio, camisa de mangas curtas e calça jeans. Não tem nenhuma identificação de que é um padre. Checa as mensagens de Whatsapp, atende ligações e, no encontro seguinte, confere os comentários e ofensas após ele ter publicado um post sobre a exposição “Queer Museu”, que o Santander Cultural encerrou mais cedo em Porto Alegre. “Exposição de arte não ofende a moral. O que ofende é a miséria, a tortura, a exploração, a corrupção e a especulação financeira”, postou ele.

A publicação recebeu várias ofensas, e dias depois já não estava mais em seu Facebook. “Jesus nunca foi moralista. Andava, inclusive, com as pessoas que ninguém queria”, lembra. Enquanto é ofendido nas redes sociais, várias pessoas o cumprimentam na livraria em que conversamos. Um dos sermões do padre faz com que esteja sendo processado pelo deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) por chamá-lo de homofóbico, racista e machista. Também já foi bloqueado do Facebook três vezes por postar fotos consideradas violentas de moradores de rua feridos.

 O sacerdote volta a citar o Papa Francisco – que trabalhou com pessoas em situação de rua quando atuava em Buenos Aires – lembrando que a frase que o pontífice usou recentemente para os migrantes e refugiados também cabe às pessoas com as quais convive: “não sou perigoso, estou em perigo”. Padre Julio concorda com essa afirmação. “Em geral, a visão que se tem é que são perigosas, ou por que são loucas, ou porque são dependentes químicas, mas são elas que estão em perigo de fome, que correm riscos no lugar em que estiverem. São refugiados urbanos”.

Ele acrescenta que não gosta de alguns conceitos, como o de políticas públicas. “É uma forma de controle da pobreza. Qual política pública funciona no nosso sistema? É um conceito de uma sociedade completamente desigual. Você usa alguns eufemismos para dizer ‘todo mundo teve oportunidades’. Coloca o problema nas pessoas e oferece migalhas”, ataca. Ele acredita que o custo que o Estado tem com essas pessoas podia ser investido diretamente a elas para que se autogerissem.

A convivência, segundo o padre, é uma forma de garantir a participação dos moradores de rua na construção de propostas, de modo que não sejam formuladas pelas entidades, mas condizentes com a realidade em que vivem. É o que muitos buscam promover. Além de abrigos e organizações que atendem essa população, a própria igreja católica possui um espaço chamado Casa de Oração do Povo de Rua. “Lá, comemos juntos, entendemos o mundo, a linguagem. Nós celebramos com eles e tentamos, no conflito da cidade, construir possibilidades conjuntas. Fazemos atividades diárias, lúdicas. Oferecemos espaço para que façam sua própria comida. Mas não queremos ser algo institucional, como os albergues da prefeitura”, afirma. Julio critica as regras impostas e costuma dizer que não são os albergues que são da população de rua, mas a população de rua é que é dos albergues. “É como se tivesse uma porta de determinado tamanho e só cabe quem tem aquela altura, quem for mais baixo ou mais alto não entra”.

O padre Julio convive diariamente com muitos conflitos e desafios. O maior deles é justamente garantir a autonomia dessas pessoas. “A população de rua não tem direito a escolher nada. Nem a comida que come. Nem a cama que dorme, nem a roupa que veste. Quem de nós veste uma cueca usada? A vida deles é devassada, sem intimidade. As respostas são muito institucionais. Não é levada em conta a questão pessoal, de ver cada pessoa. Está tudo muito massificado”, afirma sobre as políticas oferecidas aos moradores de rua. “É o que (Carl) Jung diz: ‘você deve conhecer todas as técnicas, mas diante de um ser humano, seja humano’. Isso falta nesse sistema”.

Outra questão levantada por ele é a atitude de querer tirar essas pessoas da rua, feita geralmente de forma vertical. Julio defende que quando elas decidem ficar é uma forma de dizer: ‘eu não consigo sair do jeito que você quer’. “O Padre José Comblin, téologo, falava: ‘você tem liberdade se você tem possibilidade de escolha’. A população de rua não tem liberdade. Algumas vezes, não pode escolher nem o lugar da cidade que quer ficar”, ressalta. Outra máxima retrucada por ele é: ‘vamos ajudar quem quer ser ajudado’. “Quem decide quem quer ser ajudado se ela aceita todas as regras? Nós exigimos deles tudo aquilo que não fazemos”, considera o padre.

O Estado, a sociedade, a igreja e quem vive na rua

“E qual é o papel do Estado nisso tudo?”, pergunto. Ele responde: “Falamos do Estado como se ele fosse sempre o mesmo. Não é. O governo molda o Estado. Um sistema neoliberal que não garante condições de vida, com liberdade e autonomia”, considera. E se lembra de outro conceito que não gosta muito: o de cidadania. “Parece que quanto mais domesticado você for, mais cidadão você é. Então cidadão significa quem é normal, quem segue as normas. A convivência teria que garantir a possibilidade das pessoas serem livres, autônomas…”.

As ações feitas pelo atual prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), na Cracolândia, com o intuito de tirar à força os usuários de drogas da região da Luz, são vistas por ele como um grande teatro de mau gosto. “É uma coisa tão perversa, tão desumana, tão centrada na força, na ordem, na cidadania, na regra…”, diz, sem poupar críticas também aos governos anteriores. “Não mudou nada. O poder nivela todos os grupos políticos. Retrocesso? Porque o cassetete de um era mais leve e do outro é mais pesado?”.

Para além da Cracolândia, o padre acompanha de perto as ações do poder público em relação ao Cimento, uma área na Mooca de carga e descarga do material, ocupada há cerca de 40 anos por pessoas em situação de rua. Hoje, 500 moram lá e a luta para permanecerem é frequente. “Já levei gás de pimenta da polícia. Já interromperam a Radial Leste (avenida da capital paulista) com fogo em protesto por desocupação e continuamos persistindo para que  possam permanecer lá”.

Sem muitas expectativas em relação ao Estado, qual o papel Julio Lancellotti espera que a sociedade tenha frente a essa população? “Uma coisa que todos podem fazer é não tratar mal. É não ser preconceituoso. Todos podem falar com eles, ter um olhar diferenciado. Humanizar as relações, ter gestos de aproximação. E dentro do sistema em que estiverem, pressionar para que essas pessoas sejam levadas em conta”, sugere.

Já quando o assunto é religião, o padre garante que o tema é presente na vida das pessoas em situação de rua. O sacerdote conta que eles gostam de ler a bíblia, mas que isso não pode ser usado para culpabilizá-los. “A religiosidade não é neutra. Tem um ditado antigo que diz que ‘todo caminho leva a Deus’. Mas de que Deus você tá falando? Eu acredito mais no Deus ao qual não é o caminho que me leva, mas que ele vem ao meu encontro. Isso de caminho que leva a Deus pressupõe mística, merecimento…” Faz uma pausa e conclui, rindo de si mesmo: “Eu sou um padre meio atrapalhado, né?”

Questiono se há pessoas de outras religiões que não querem ser atendidas pelos católicos, e o padre afirma que o importante é saber lidar com cada uma da forma que ela é. Alguns vão à paróquia pedir um terno para ir à igreja evangélica. “Não tenho esse tipo de preocupação. O que queremos é que tenham a dignidade reconhecida, protegida”. Ele afirma ainda que o segredo é ouvir sem perguntar muito, já que o maior anseio deles é por atenção. “Às vezes, quebram minhas pernas dizendo ‘você pode só me ouvir?”. E emenda com uma frase de efeito: “a esperteza é a arma do pobre”.

Missa, posto de saúde, delegacia, casa de acolhimento…

Todos os dias, o padre celebra a missa às 7h na Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca. É uma igreja pequena, repleta de santos. A missa corre seguindo todos os ritos da igreja católica. A maior parte dos cerca de 20 presentes são mulheres brancas com mais de 60 anos. O padre veste uma túnica branca e tem uma estola verde no pescoço. Ao fim da celebração, há cerca de 20 pessoas esperando ele para pedir doações, todos homens entre 20 e 50 anos, a maior parte negros. O grupo de carolas e pessoas atendidas não se relaciona muito. Algumas ajudam nas doações, outras têm medo, mas o padre garante que toda a comunidade aprendeu a conviver com os moradores de rua.

“E você melhorou?”, pergunta o padre a um dos homens, que responde: “Melhorei”, e tosse. “Manera, né?”, replica o padre. “Parei”, conclui ele, sem muita convicção. A primeira leva de pessoas é atendida com roupas. “Esse aqui assusta todo mundo”, brinca um deles, apontando um colega. “Assusta? Você não me assusta”, diz o padre abraçando o homem agora envergonhado. Há também os que procuram produtos de higiene pessoal e comida. E os que chegam com demandas mais sociais. Como a mulher que teve o marido preso quando eles foram tirar a segunda via da identidade e o companheiro foi detido por ter pendências judiciais.

Ela chora após ser maltratada na delegacia ao pedir informações do companheiro. Julio volta com ela ao posto policial para obter as informações necessárias. Passou a manhã falando com uma advogada, e no fim assinou um termo dizendo que a residência do homem era a igreja. A expectativa é que ele seja solto em breve. Antes, o padre se emociona: “Uma das coisas que me toca é ver uma mulher chorando por amor. A gente não caleja”, conclui, com lágrimas nos olhos.

Pessoas continuam chegando para pedir roupas, que agora acabaram. Quando passa o frio, época crítica em que costumam ocorrer mortes de moradores de rua, as doações para a paróquia diminuem. Uma mulher transgênero (que nasceu no corpo masculino) pede para falar com o padre em particular. Ela está com sífilis e foi mal atendida no posto de saúde. Não sabe o que fazer com os remédios e por que as manchas do corpo não sumiram. O padre também a acompanha até a instituição de saúde e sai de lá com orientações melhores, além de um protetor solar para não piorar as manchas.

Um homem chega pedindo o encaminhamento social para a segunda via do alistamento militar. Num acordo com o Exército, Julio conseguiu a isenção de pessoas em situação de rua. A igreja já estava sem recursos para angariar os R$ 13,80 de cada um que precisava. Há demandas ainda por fotos 3X4 para documentos, fotocópias, cinco minutos no computador para mandar recados pelo Facebook, telefonema… Ele reforça que não há um “atendimento” e sim uma “convivência” com essa parcela da população. O número varia diariamente, de 30 a 50.

Quando um deles pergunta “E aí, padre, tudo bem?”. Ele responde: “Bem… tá difícil. Estamos pelas tabelas”. Ri da manchete do jornal que retrata mais uma denúncia de formação de quadrilha para corrupção e dispara: “mas são os pobres que vão presos”. Peço para ele me contar uma história de alguém que o tenha marcado nesses anos todos, e ele escolhe uma de superação. “É um rapaz que conhecemos na rua e entrou em um projeto de agentes de saúde de rua. Ele é de ascendência afro e por meio de cotas conseguiu ir estudar Medicina em Havana. Formou-se médico e voltou ao Brasil dentro dos Médicos sem Fronteiras. Hoje, atua no interior da Bahia e está fazendo a revalidação do diploma. Recentemente batizei o filho dele”, orgulha-se.

E como o Julio, homem, enxerga o próprio trabalho? “Como convivência. Para mim, esse aprendizado é rico humanamente. Agora, dentro desse sistema que a gente vive é um fracasso. Por quê? Porque no dia que eu estiver nesse sistema e não for um fracassado é porque aderi a ele. Inútil, perda de tempo, fracasso. O que isso resolve? Não resolve nada. Esse sistema é muito pragmático. ‘Quantos você já tirou da rua?’. Quando alguém me pergunta isso eu pergunto: ‘e você já botou quantos?”.

A agenda do padre é cheia. Dá entrevistas, participa de reuniões, assembleias, audiências públicas, encontros de espiritualidade… Almoça geralmente sozinho em um dos comércios do bairro em que cresceu e se tornou padre. Numa terça-feira em que reclamava do calor, comeu omelete, salada e arroz, enquanto mexia no celular. “É interessante que as tecnologias evoluíram muito, mas as pessoas continuam acreditando no ‘pensamento mágico’. As crenças em coisas místicas, como mal olhado, ainda são muito fortes”, observa entre uma garfada e outra.

Quando chega à casa em que mora com três sobrinhos adultos, ele tira os sapatos, coloca os pés para cima e lê algo. Geralmente livros de Sociologia, Psicologia ou Teologia. Antes de dormir, por volta das 23h, faz uma introspecção para conseguir não levar os problemas que ouviu no dia para a cama. Às 6h, está de pé para começar tudo de novo. Pergunto sobre férias e ele diz que esse é um conceito capitalista, mas admite que há muitos anos não tem um período para descansar. Aos 68 anos, questiono se planeja se aposentar aos 75, como possibilita a igreja. Ele afirma que não pretende morrer muito velho, mas garante não parar até lá.

Serviço:

A Paróquia São Miguel Arcanjo recebe doações de roupas e alimentos. O endereço é: rua Taquari, 1100, Mooca. Funciona segunda, terça, quinta e sexta-feira das 7h30 às 11h30 e das 13h30 às 17h. E aos sábados, das 7h30 às 11h.

*Texto originalmente publicado na Revista Sentido

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Redação

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