Pernambuco: rotas do maracatu e da ciranda que você precisa conhecer

Conheci uma parte de Pernambuco ainda no início da vida adulta, a oportunidade veio a partir de familiares que vivem no estado. Uma tia ávida em me mostrar muito da cultura pernambucana teve a feliz ideia de me levar ao Marco Zero, que fica na Praça Rio Branco e é conhecido como o local de fundação de Recife. Ali há um “marco” (como já diz o nome) circular que é o ponto inicial de contagem das distâncias para todos os lugares a partir da capital, por ele são feitas todas as medidas oficiais de distâncias rodoviárias locais, por exemplo.  

O Marco Zero fica no Recife Antigo – marcado pela arquitetura do século 18, nesse pedaço histórico da cidade concentra bares, lojas de souvenir e o Mercado de Artesanato, mas há também forte movimentação durante o Carnaval. Como fui privilegiada por estar em Pernambuco menos de um mês antes da folia, no dia em que conheci o lugar vi pela primeira vez, ao vivo, grupos de maracatus se formando ali para apresentações. O som dos tambores ecoou e é difícil não ser tocado. Neste ponto se apresentam os maracatus de baque virado, as nações pernambucanas.  

Recomendo assistir especialmente a Noite dos Tambores Silenciosos, que acontece há mais de 50 anos, durante a segunda de Carnaval, no Pátio do Terço, no bairro de São José, Recife. O encontro reúne mais de 20 nações em uma celebração à ancestralidade negra, uma das manifestações mais aguardadas. Quando os relógios marcam meia-noite em ponto os tambores param de tocar e todas as luzes do local são apagadas. No silêncio e no escuro, um babalorixá entoa uma oração em iorubá e saúda a divindade Iansã e antepassados. A discreta homenagem aos mortos era uma reverência feita por grupos tradicionais como Elefante e Leão Coroado, mas que com o tempo criou-se grande proporção, se tornando um evento. O Pátio do Terço, onde acontece o encontro, é escolhido por carregar uma história preta, pois na região funcionou um dos primeiros terreiros de Candomblé, em Pernambuco. O lugar também abrigou um comércio escravagista e foi local de sepultamento de escravizados.  

O maracatu de baque virado é um símbolo de resistência muito forte, por ser uma expressividade preta que nasce de grupos escravizados que se valiam dessa cultura para louvar as divindades africanas, durante a repressão colonial. Enquanto autoridades viam apenas um maracatu, existia a devoção ancestral levada para a rua. Neste tipo de maracatu, há figuras como a rainha e o rei de Congo, a dama do paço – responsável por carregar a calunga (bonecas que contém mistérios e consagradas a determinados orixás), o porta-estandarte e os batuqueiros. Há ainda algumas liturgias feitas dentro de terreiros que são preparações para curtir o Carnaval em segurança. Aliás, de acordo com o Senado Federal, para um grupo ser reconhecido como “maracatu nação” é preciso ser ligado à uma religião de matriz africana. O grupo mais antigo é o Elefante, fundado em 1800 por Manuel Santiago, escravizado a época, cujo nome foi escolhido por ser um animal protegido por Oxalá.  

Além do Marco Zero, há nações que podem ser vistas no bairro do Pina, também em Recife, como o Encanto do Pina e Nação Porto Rico e onde acontece a tradicional Noite do Dendê. Já em Olinda, no bairro de Águas Compridas, está o Ponto de Cultura Leão Coroado, sede do Leão Coroado, cujo um dos mais significativos mestres, Luís de França, foi a inspiração para a criação do Dia Nacional do Maracatu, comemorado em 1º de agosto, data em que Luís aniversaria – na cidade acontece a celebração durante o período, com diversas apresentações. Em Olinda ainda, é possível aproveitar para fazer a Caminhada Olinda Negra, comandada pelo Guia Negro, em parceria com o grupo de afoxé Alafin Oyó

Em Pernambuco há também outra categoria de maracatu, que é o maracatu rural, ou baque solto, que mescla a cultura africana, brasileira e indígena. O baque solto nasceu em regiões da Zona da Mata, como Nazaré da Mata, e em Igarassu que foi fundado por trabalhadores rurais e cortadores de cana-de-açúcar. Há figuras ícones, como o caboclo de lança, que lembram os caboclinhos, a folia de reis e que também podem ser considerados guerreiros do orixá Ogun. Após uma cerimônia religiosa, a lança e a flor carregadas pelos caboclos são abençoadas. Além das alfaias, no baque solto há instrumentos de sopro. O grupo Cambinda Brasileira é um dos mais antigos do maracatu rural. Dentre as duas regiões onde nasceu o baque solto, conheci Igarassu, que fica a 25 quilômetros de Recife e é uma região com forte cultura católica, marcada por igrejas antigas, como a Igreja de São Cosme e São Damião.  

CIRANDA

Outra expressividade importante em Pernambuco é a ciranda que, longe do termo pejorativo e racista utilizado para criticar movimentos da esquerda política, é uma cultura popular que nasceu também na Zona da Mata, litorais pernambucanos e em alguns estados do Nordeste cultivada por trabalhadores rurais, pescadores de mangue e de mar e operários. A ciranda tem como sua maior representante a artista Lia de Itamaracá, responsável por levar a manifestação artística para outras regiões do país e que pode ser conferida na Praia de Jaguaribe, em Ilha de Itamaracá, local onde a artista vive. Na ilha, há uma vista linda, para quem gosta de praias é um prato cheio. A Praia do Forte Orange reúne as principais atrações da ilha, entre elas a Embaixada da Ciranda, no Forte do Orange, o Ecoparque Peixe-Boi & Cia e Ilhota Coroa do Avião, que pude conhecer e desfrutar de uma água morna cristalina e comer muitos caranguejos em locais simples e com ótimos pratos típicos – é relaxante, embora pessoas locais tenham me alertado que na maré alta a ilhota quase desaparece, o que deu uma certa aflição. A travessia para a Coroa do Avião é feita de barco a partir da Praia do Forte Orange.  

Por lá também fica a Casa de Sal, em que duas mulheres negras, Maria Gabrielly Dantas e Edna Dantas construíram a primeira casa de garrafa de vidro de Pernambuco, recuperando 7.474 garrafas. Hoje, elas recebem hóspedes na Praia do Sossego e comercializam roupas no Brechó Cabrochas. Vale a visita.

Há ainda outras manifestações musicais com raízes negras como o Coco e o Cavalo Marinho. Pernambuco tem uma rica cultura e há muito a conhecer e explorar. Espero que todo mundo possa ter a oportunidade de se deliciar com esse estado!

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Joyce Nascimento

Jornalista por formação e atuação, desenvolve escritas a partir do que sente, do que vivencia e de suas pesquisas. Sua caminhada é também laboratório de informações. Sambista, ex-passista da Mangueira e do Paraíso do Tuiutí, e candomblecista, visa escurecer as coisas versando com a cultura de sua origem afro-brasileira e com povos tradicionais de matriz africana

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