Solar do Unhão, o hit do verão de Salvador

Praia e comunidade viram cartão postal da capital baiana e cenário de clipe de Anitta; visitantes são atraídos pela beleza e tranquilidade

Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel.

As casas improvisadas entre a Baía de Todos os Santos e a pista dos carros no alto formam uma comunidade que ganha o nome de Solar do Unhão, o mesmo do conjunto de casarios do século XVI, que ao longo dos anos foi mudando de função e desde 1960 abriga o Museu de Arte Moderna (MAM) da Bahia. Entre o MAM e a comunidade há uma praia de pequenas pedras, comum na Europa, mas raro no Brasil, resultado de uma obra há cerca de 30 anos na marina de Salvador, localizada a poucos metros dali.

Esse cenário paradisíaco ganha os visitantes e moradores que lotam a capital baiana durante o verão. O aumento de pessoas é visível e refletiu na comunidade, que vê positivamente o aumento de turistas. A tranquilidade e as cores dos grafites nas paredes marcam uma espécie de quilombo de resistência local. As reclamações deles giram em torno do aumento do lixo na praia; do som alto de algumas festas e do medo da inflação dos preços dos aluguéis, puxados por uma possível gentrificação, uma vez que o local já atrai estrangeiros e pode se tornar a “Vidigal de Salvador” (a comunidade do Rio tem vários empreendimentos de turistas do exterior também por conta da vista e da tranquilidade).

O Vidigal foi cenário do clipe “Vai Malandra”, da cantora Anitta, que aparece dançando na comunidade do Solar do Unhão junto com Tropkillaz, J. Balvin, e MC Zaac no vídeo da música “Bola, Rebola”. A novela “Segundo Sol”, da TV Globo, que trazia a Bahia como seu cenário também mostrou takes da praia. Esse momento de efervescência é bem diferente de 2016, quando só os moradores frequentavam o Solar. O MAM tem sua própria faixa de areia (sem pedra), mas que ficou fechada por dois anos por conta das obras do complexo.
 
Reaberta no começo de janeiro de 2019, ela ajudou a levar mais turistas para a região. Todos os dias, às 17h, os guardas começam a sinalizar o fechamento dos portões e pedem que os turistas saiam. Muitos atravessam de barco (R$ 5 a R$ 10 por pessoa) ou a pé para a praia do Solar do Unhão, que já abriga outra dezena de pessoas que preferiram curtir o pôr do sol ali, e não no Porto da Barra, onde fica o famoso farol.
 

 

O comércio mais conhecido do Solar do Unhão é o “Re-restaurante da Suzana”, da cozinheira Suzana de Almeida Sapucaia de 62 anos, que há 40 mora por lá. Com lenço na cabeça, ela conta que há oito anos deixou de vender comida na praia da Ribeira e passou a comercializá-la no próprio quintal. O incentivo veio do grafiteiro Júlio Costa, que tinha mudado para a comunidade, e começava a pintar as casas e ladeiras ao mesmo tempo em que fazia residências artísticas. Artistas de outros lugares moravam em uma casa no local em troca de oferecerem oficinas aos moradores.

Júlio não topou dar entrevista, mas é apontado por vários moradores como responsável pela mudança da imagem do Solar do Unhão. Foi ele, por exemplo, quem batizou o restaurante de dona Suzana. Hoje ela atende até 30 pessoas por dia, que comem moqueca, peixe frito e feijão. Muitos turistas do Rio de Janeiro São Paulo e até estrangeiros frequentam o local, que cobra cerca de R$ 20 por uma moqueca de peixe, de arraia, de camarão ou vegetariana.

Além do dendê, D. Suzana atribui o sucesso do restaurante ao amor com que cozinha. Seu comércio foi retratado no episódio da série “Street Food”, da Netflix sobre comida de comida de rua em Salvador. Ela trabalha de domingo a domingo, não vai à praia, e costuma sair da comunidade apenas para fazer compras no Dois de Julho, o bairro central localizado acima da comunidade. “Tem dias que paro, bebo café e vou comer hambúrguer para não enjoar da minha própria comida”, diz. O restaurante funciona das 12h às 16h, tem vista para o mar e fica no fim de uma viela, sem nome ou número, mas é indicado por qualquer morador da comunidade.

A cozinheira é mãe biológica de dois filhos, mas criou mais de 30. “Eu trabalho por que quero comprar minha casa e endireitar ela. Hoje vivo de aluguel e estou com nome no SPC”, conta. A cozinheira relata ainda que quando a maré sobe, o mar fica revolto e as grandes ondas quebram na sua parede. “Eu preciso trocar alguns móveis sempre”.

 

Cheia de ladeiras e escadas, grafites de Iemanjá e números 13 espalhados por todos os cantos, a comunidade fez sua própria festa da divindade do mar. Foi um cortejo liderado pelas casas de candomblé que desceu para levar oferendas à praia. Bandeirinhas azuis e brancas foram espalhadas pelas ruelas do local. Elas ainda decoram a comunidade e acabaram aparecendo no clipe de Anitta.

O marido de Suzana é o pescador Antônio Carlos Dias, 67 anos, que há mais de 30 entra no mar para pegar peixes como vermelho, cavalo e arraia. “Tudo depende da maré. Às 6h da manhã eu entro mar. Já vi várias tempestades, já fui furado de arraia. Hoje vou menos, mas não paro”, relata. São pelo menos 20 quilos de peixes por dia que são vendidos na própria comunidade e no Dois de Julho.

 

Moradores. Quem viu o número de clientes crescer nos últimos meses foi a comerciante Taís Santos, de 19 anos. Ela mora no bairro há dois anos, desde que se casou. Apesar de se considerar privilegiada por conta da vista, Taís admite que não lembra a última vez em que foi à praia. “Não sou muito chegada. Eu gosto da tranquilidade aqui do bairro”, diz. Taís conta que a média dos alugueis no Solar do Unhão é de R$ 500, enquanto uma propriedade não sai por menos de R$ 50 mil. No dia em que a cantora Anitta esteve gravando na comunidade ela a viu passar na sua porta, mas não conseguiu lhe dizer que é fã. “Acho que isso vai ajudar a popularizar ainda mais”, acredita.

 

Sem escola, unidade básica de saúde, creche ou posto policial, os moradores do Solar do Unhão precisam subir para os bairros vizinhos, como o Dois de Julho e o Campo Grande, quando precisam de equipamentos públicos. Além da rua que termina na entrada do museu, a comunidade tem outro acesso à pista por meio de um escadão. Decorado pelo artista plástico Zaca Oliveira, ele ganhou azulejos e grafites de Júlio Costa e sua turma de amigos. Para quem está no pé da escadaria, ela lembra a Selarón, que ficou famosa na Lapa, no Rio. Mais do alto, é possível ver o mar e passar por baixo da Avenida do Contorno, que liga o centro à cidade baixa.

A ajudante de cozinha Maiana do Amor, 25 anos, lavava roupas em uma das vielas quando foi abordada pelo Guia Negro. Ela diz que após a novela Segundo Sol foram colocados mercadinhos na comunidade. “A imagem também mudou. As pessoas achavam que quem morava aqui era vagabundo, e hoje vêem com bons olhos”, afirma. Outra reclamação é a violência policial. “Eles revistam todo mundo. São muito agressivos, ainda mais por sermos negros. A gente coloca as crianças para dentro. É até engraçado, mas o nosso medo é da polícia”, diz. Os moradores dizem que não há facções ou milícias controlando a comunidade.

Já o aumento de visitantes é visto por ela com bons olhos. “Só não gosto de quem não leva o lixo que trouxe da praia e fuma maconha. Somos família. É preciso deixar a comunidade do mesmo jeito que encontrou”, adverte. Ela nasceu no Solar do Unhão e diz que aproveita a praia sempre que pode. “A prefeitura já mencionou que quer nos tirar daqui. Vão querer construir hotéis e restaurantes chiques, mas daqui a gente não sai”, garante. Procurada a prefeitura de Salvador, não respondeu sobre seus projetos para o local.

 

História. Localizada ao lado da comunidade da Gamboa, que é maior e mais conhecida, o Solar do Unhão teve um deslizamento de terra em 1979 que matou quatro pessoas.  Nos anos 1980, o Solar começou a ganhar mais habitantes e houve uma revitalização das casas. Hoje mais de duas mil pessoas vivem por ali. A aposentada Isabel Ferreira de Souza, 67 anos, é uma delas e mora no local desde que nasceu. “Meus pais foram os primeiros moradores. Eles eram feirantes e mudaram para cá”, conta. Ela conhece todos da comunidade e é chamada de comadre por quem passa em frente de sua casa e a cumprimenta. “As pessoas preferem dar os filhos para serem batizados pelos vizinhos que estão mais perto do que para a família. Aqui um ajuda o outro”, garante. “Eu adoro a zoada das minhas crianças”, diz Isabel, que cresceu ao lado de sete irmãos, criou ali os quatro filhos, sobrinhos, afilhados e ajuda com os dez netos e dois bisnetos. “Eu vou sair daqui pro cemitério”, diz a mulher, com a grade da porta fechada.

Na casa, ela comercializa cerveja, geladinho, lanches e também alguns utensílios domésticos. Enquanto a entrevistávamos, ela vendeu um comprimido de Sonrisal por R$ 2 para uma vizinha. Nos dias de show no MAM, Isabel coloca sua barraca em frente ao museu e ganha um trocado com quem frequenta o jazz, que ocorre aos sábados, e as apresentações artísticas realizadas em alguns domingos. “Faz oito anos que o museu está em reforma e nunca termina. Eu já fui lá algumas vezes, mas vou mais para vender minhas coisas”, diz. Quando pode, dona Isabel ainda pesca. “Uso mais em casa, mas quando vem bastante a gente vende”, diz.
 

 

MAM. O MAM não sente os reflexos do aumento de visitantes na região, segundo o diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia, Zivê Giudice. Para ele, os atrativos da praia refletem pouco no crescimento de público dentro do museu, mas Zivê afirma que nos dois primeiros meses de 2019, 30% de pessoas a mais visitaram as exposições. “Isso tem a ver com esse aumento de turistas no verão. Salvador está apinhada de gente”, ressalta.

Cerca de 300 mil pessoas estiveram no MAM em 2018. Antes de ser um museu, a casa abrigou armas da Segunda Guerra e uma fábrica de rapé (1820 a 1926) até ser restaurado pela arquiteta Lina Bo Bardi em 1960 para abrigar o MAM. O solar foi construído em terras que, no século XVI, pertenciam a Gabriel Soares de Souza, por isso eram chamadas de Ribeira do Gabriel. Em 1584, as terras foram doadas ao desembargador Pedro de Unhão Castelo Branco, que teria construído o solar. A igreja barroca, que hoje dá espaço às artes, foi erguida pela família de José Pires de Carvalho e Albuquerque que herdou o casario. Na parte de baixo, há uma lenda de que havia senzalas, mas o diretor do museu nega.

 

Zivê não acredita que o clipe de Anitta, que não mostra o museu, traga mais público ao MAM, mas ressalta que o as comemorações de 60 anos do espaço de exposição devem colocar o casarão no circuito da cidade. O museu deve voltar a ter restaurante, cinema e a expectativa é que a obra do parque das esculturas fique pronta. Ainda são esperadas exposições de Adriana Varejão e Vick Muniz, além da retomada de oficinas teóricas e práticas, como a de xilogravura. O MAM abriga obras como o Touro, de Tarsila do Amaral, painéis de Caribé, e esculturas de Emanoel Araújo. “Somos desejados pelos grandes artistas brasileiros”, acredita.

Questionado sobre qual a relação do museu com a comunidade, Zivê tergiversa e lembra de projetos com crianças de escolas públicas. Ele diz também que 60 funcionários foram demitidos em 2016 por corte de gastos e que alguns deles moravam no entorno. Hoje são 30 prestadores de serviço. O diretor do MAM não quis informar o orçamento mensal do museu. “Vivemos também dos nossos esforços. Muitas coisas não têm recurso do governo do Estado, mas tem das pessoas que nos ajudam”, afirma.

 

Na principal sala de exposição, uma escada de madeira projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi (a mesma do Masp) é um elemento marcante. No quintal, mangueiras, saguis e casas coloniais. O estacionamento é utilizado também para festas, como a Onda, com músicas pops e eletrônicas, que ocorreu no último 23 de fevereiro. Do parapeito de pedras do lugar que param os carros, os meninos da comunidade se jogam no mar, numa brincadeira diária.

 

Pop. Do alto da comunidade, muitos moradores nunca desceram para ir ao museu ou pouco frequentam o local. A dona de casa Mônica de Negreiros, 45 anos, mora há seis na entrada do Solar e diz que passou pelo MAM poucas vezes. Com a casa rachada, com três cômodos e piso de vermelhão, ela conta que está reforçando as estruturas para ficar mais segura. As roupas são estendidas dentro da casa e as paredes funcionam como agenda telefônica.

A filha de seis anos brinca sozinha nas vielas. “Aqui é muito tranquilo. Só a música alta que incomoda as vezes”, conta. Quando chove, a água da Avenida do Contorno cai nas casas na comunidade. Mônica está vendendo mais água de coco e abará nos últimos dias, mas reclama do aumento do lixo com o crescimento dos visitantes. “Tem dias que vou lá na praia catar. Tem coisas que dá para aproveitar”, diz.

 

O hype  da praia atrai pessoas de outros lugares da cidade. É o caso da empreendedora baiana Monique Evelle, 24 anos, que hoje mora em São Paulo e que tem família no bairro da Pituba, que também é beira-mar, mas prefere atravessar a cidade para curtir praia no MAM. “Lá é lugar de ‘coxinha’. Não é a mesma relação com o território. As pessoas acham que é praia privada. Prefiro me deslocar para ver uma galera que tem mais a ver comigo”, diz.  Monique acredita que é bom para a cidade ter atrações fora do eixo Barra-Rio Vermelho. “Temos que lembrar que esse é o Caribe, mas cuidar dele. Não podemos esquecer que moram pessoas aqui”, afirma.

Quem participou das residências artísticas do Musas (Museu de Street Art de Salvador), idealizado pelo grafiteiro Julio Costa, também mudou sua relação como o local. É o caso da empreendedora e comunicadora digital, Loo Nascimento, 32 anos, que cresceu passando pela Avenida do Contorno e ouvindo que aquele lugar era perigoso. O estigma terminou quando deu oficinas de bonecas na comunidade em 2013.

Há dois anos, ela mudou para a avenida do Contorno e passou a frequentar a praia do Solar. “Me sinto um pouco culpada (por esse aumento de pessoas). Comecei a trazer amigos para comer no Restaurante da D. Suzana. Isso é um quilombo, separado do resto. É uma disposição geográfica louca e bonita”, afirma ela, que tem mais de 60 mil seguidores no Instagram, onde é conhecida como Neyzona.

Loo avalia o verão de 2019 como caótico para a comunidade. “Não tem lixeira. As pessoas precisam zelar pelo espaço. Isso não é safári urbano. Antes era excluído e subjugado e porque agora é interessante”, questiona e complementa: “Cada um que vem aqui tem que pensar que troca quer oferecer. Não é só sugar. Todo mundo tem que ter a oportunidade de aproveitar e deixar um bom legado”. O convite já está feito.

 

*Originalmente publicado na revista digital Calle2.

**Atualizada em 22 de julho de 2020

LEIA MAIS:

Os sambas da Rua 2

 
 
 
 
 

 

Compartilhe:
Avatar photo
Redação

O Guia Negro faz produção independente sobre viagens, cultura negra, afroturismo e black business

Artigos: 706

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *