Gana: uma viagem pela estrela negra

Por Camila Daniel*

Tem um provérbio africano que diz que é necessário uma vila inteira para criar uma criança. Eu diria que também foi necessário uma diáspora para me levar a Gana. Meu primeiro destino na África, o país brilha vida em línguas, ritmos, cores e sabores para além do preto e branco colonial. Não é à toa que Gana é carinhosamente apelidada de “Black star”, referência à estrela negra estampada na sua bandeira. Primeiro país a conquistar independência na África, em 1957, a estrela negra de Gana raiou o brilho da esperança de liberdade dos africanos no continente e na diáspora.

Por que Gana?

Localizado no oeste da África, Gana é um destino tradicional para viajantes negros em busca de sua ancestralidade. Muitos afro-estadunidenses vão para Gana como turistas, mas também repatriados e não é de hoje. Um grande exemplo foi o ativista e sociólogo afro-estadunidense WEB Dubois. Quando Gana conquistou a independência, o líder da libertação, Kwame Nkrumah, o convidou para a construção do novo país africano. O convite foi aceito. A casa onde Du Bois viveu em Acra é uma parada obrigatória. Essa foi o primeiro lugar que eu visitei em Acra, a capital de Gana.

Apesar da efervescência do chamado “turismo de herança” – que conecta pessoas negras à África -, ainda somos poucas as pessoas brasileiras viajando por Gana. Escolhi o país incentivada por amigos afro-estadunindenses que já tinham percorrido essa rota e de amigos imigrantes africanos. Juntos, eles formaram a vila global que me levou de volta à África.

Os preparativos

Comprei as passagens em Julho para viajar em março. Brasileiros que viajam para Gana precisam de visto. Entre os requisitos para o visto estão indicar dois contatos em Gana. Os meus foram dois ganenses que eu conheci no Brasil: um, num baile Black Bom e na festa Okupiluka, ambas no Rio de Janeiro. Para entrar em Gana também é necessário os comprovantes da vacina contra a febre amarela e a COVID. Antes de viajar, me certifiquei de comprar dólares em espécie, e lá eu troquei por cedis, a moeda local. Também fiz um seguro-viagem. Contratei uma agência recomendada por um amigo afro-estadunidense para me guiar durante minha estadia, principalmente, fora da capital. A  Nyonkopa ecotours me deu total auxílio antes e durante a viagem. Ela fez um roteiro personalizado, de acordo com meus interesses – com muita dança, minha paixão.

A viagem

“Por que você está indo para Gana? Você é louca?”, me indagou a atendente – branca – que fazia meu check-in no aeroporto Galeão, no Rio de Janeiro. Apesar da pergunta inconveniente, ela, muito solícita, contou que nunca tinha feito o check-in de alguém indo Gana, muito menos a turismo. Embarquei no Galeão num voo para Londres. De lá, outro para Acra. Já no embarque, senti que esta viagem seria transformadora. Enquanto no voo Rio-Londres eu era uma das pouco mais de meia dúzia pessoas negras, no vôo Londres-Acra, a imensa maioria dos passageiros eram negros. Pela primeira vez, eu não era a minoria num avião. Minha viagem durou o total de 19 dias e incluiu a capital Acra, as cidades de Kumasi, Cape Coast e uma excursão de um dia pelo rio Volta.

Em Gana, o língua oficial é o inglês, que convive com mais de 40 línguas originárias. Em Acra, cidade onde passei a maior parte da minha estadia, o Twi e o Ga são as línguas mais faladas. Ga também é o nome do grupo étnico originário de Acra. Inclusive, esse grupo inspirou o nome de Gana que, antes da independência, era chamada de “Costa do ouro”.

Meus dias em Gana foram embalados por muita música e dança. No dia-a-dia, afrobeats é o ritmo que eu mais ouvia, junto com ritmos locais, como o High Life e muita música evangélica. A presença das igrejas evangélicas é muito marcante e isso se reflete na cultura musical cotidiana. Além disso, é preciso lembrar que por lá a homoafetividade é crime.

Dançar é uma dimensão importante da vida ganense – e da minha também. Por isso, além do roteiro tradicional do turismo de herança, – em Cape Coast, visitar os castelos que aprisionavam escravizados e o rio onde eles tomavam o último banho antes de embarcar nos tumbeiros; em Kumasi, visitar marcos do império Ashanti, ir numa fábrica de kente e de estamparia de adinkras e passar pela cerimônia de renomeação e em Acra visitar a casa do W.E.B Du Bois, no meu roteiro eu incluí muita dança.

Antes mesmo de embarcar, comecei a acompanhar um grupo de salsa, minha dança preferida, em Acra que um amigo ganense-americano que conheci em Nova Iorque fazia parte, o Salsa in the City – Ghana. O grupo me acolheu com muito carinho. Também fiz aulas Kpanlogo, uma dança Ga, com  Dzen Nako Cultural Troupe, em Acra e da dança senegalesa Kuku em Cape Coast com o grupo Akomapa Dance Group.

O radiante brilho da estrela negra

Gana me proporcionou uma enxurrada de emoções, com uma infinidade de conhecimentos. Lá, vivenciei um princípio básico da filosofia africana: razão e emoção, cabeça e coração andam juntos. Em 19 dias em Gana, aprendi tanto que senti como se tivesse uma nova graduação em Psicologia, Antropologia, Ciência Política, Linguística e Economia ao mesmo tempo, mas não sentada assistindo aulas e lendo livros escritos por mãos brancas.

E, sim, vivendo a vida, dança, tentando aprender a falar Ga com meus amigos da salsa ou Twi Fante com as crianças com quem eu fiz aula de dança em Cape Coast. Uma das lições mais importante que eu aprendi é que ser uma pessoa negra é o começo da nossa existência e não o fim. Em Gana, as pessoas são muito mais que negras. Elas são Ga, Fante ou Dagaaba. Cada grupo étnico tem sua língua, seu território, suas danças, sua história, suas cosmopercepções.

A cor da pele não as define. Nem a escravidão. Em Gana, acessei as profundezas da ferida colonial: me senti ancestralmente roubada, dilapidada: sem um nome, uma história, um passado próprios. Mas também foi lá, que a estrela negra radiou para o mundo vida e esperança.

*Camila Daniel é dançante, antropóloga doutora em Ciências Sociais e professora associada da UFRRJ. Foi professora visitante do Institute of Latin American Studies da Columbia University em 2021 e pesquisadora visitante Fulbright na New York University em 2019

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Redação

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