Documentarista de si, Beth Carvalho também documentou histórias do Brasil

Beth Carvalho ao lado de Nelson Cavaquinho (Foto: Arquivo Estadão)

Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça: essa era a premissa do cineasta Glauber Rocha. Não se sabe se Beth Carvalho conhecia essa máxima, embora a praticasse. A prova disso é o documentário ‘Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho’ (TV Zero, 2023) que estreou nos cinemas neste fevereiro.

O filme é composto, em sua maioria, por gravações feitas pela própria cantora. Entre fotografias, VHS e fita cassete, Beth tinha o hábito de registrar boa parte de sua vida, sobretudo o processo artístico de sua obra. E graças a esse trabalho de pesquisadora, como se autointitulou, que o público pode contemplar o nascimento de clássicos como ‘O Mundo é Um Moinho’ de Cartola (que, inclusive, desaconselhou Beth a gravá-la). 

Para o longa de 2h, foram analisadas 2 mil horas de material distribuídos em mais de 800 arquivos, digitalizados pelo diretor Pedro Bronz. Amigo da família e sabendo da existência desse verdadeiro museu particular, ele conversou com a artista sobre a possibilidade de realizar um documentário com o conteúdo, tendo o retorno positivo da biografada, num período em que ela estava no hospital. 

Nos botequins da vida

Iniciada na vida musical com um estilo mais voltado para a bossa-nova, Beth abriu mão do espaço que considerava elitizado, tirando o salto alto para pôr os pés no morro. Frequentadora assídua de rodas de samba nos fundos de quintais e botequins da vida, a intérprete de ‘Coisinha do Pai’ (Jorge Aragão/ Neoci Dias/ Dida) foi tomada por um assomo ao descobrir Clementina de Jesus, identificando-se rapidamente com seu estilo e conteúdo musical.

E foi justamente nesses círculos sociais onde a Madrinha do Samba garimpou as pedras preciosas do cancioneiro de samba e pagode, fazendo juz a sua alcunha. De Jorge Aragão a Arlindo Cruz, todos os ícones dos gêneros tinham relações profissionais e pessoais com ela, e não escaparam às suas lentes de cinegrafista. O longa já se inicia com Beth filmando uma roda de samba num bar e flagrando uma ilustre figura: o advogado, poeta e compositor Mário Lago.

Beth, sua câmera, e Zeca Pagodinho. (Frame do filme)

No filme, fica evidente que os amigos e artistas que conviviam com a cantora estavam acostumados aos seus registros. Nada escapou, nem mesmo divergências artísticas quando, numa sessão de gravação em estúdio, Beth discorda de seu próprio maestro, mostrando sua participação ativa e crítica no processo criativo. Outro experimento registrado, foi quando ela juntou dezenas de pessoas para escutarem o repertório de um álbum e pontuarem as quatorze melhores faixas das vinte e oito apresentadas. Isso que era ouvir a voz do povo!

A cantora cidadã

O acentuado lado político de Beth Carvalho também é assunto. Tanto na atuação político-social por meio da arte, durante anos, para que o pagode saísse do status do status de marginalização, quanto no sentido partidário. Ativa na defesa pela redemocratização, fez campanhas para Brizola e Lula. “Também sou cidadã”, dizia. Músicas como ‘Saco de Feijão’ (Francisco Felisberto Sant’anna) e ‘Meu Sangue é Brasil’ (Almir Guineto, Luverci Ernesto) entram pra categoria das socialmente questionadoras, sem nunca perder a cadência do samba. Aí está a inteligência da malandragem!

E essa sagacidade era marca de Beth em suas entrevistas. Quando perguntada por uma repórter sobre o que faltava pro Brasil se reconhecer culturalmente, respondeu que era reconhecer a sua brasilidade, que é a negritude. Outra característica da artista era valorizar os compositores que, segundo ela, são os responsáveis pelo sucesso do cantor e, injustamente, ganham menos. 

Outras facetas como a foliã, a mãe, a boêmia, são pinceladas nessa história múltipla e frutuosa que formaram uma das figuras mais essenciais para a formação da cultura brasileira. O tamanho de Beth Carvalho ainda está por ser assimilado, e o parco número de salas de cinema exibindo essa preciosidade é uma confirmação disso. É preciso ver e falar sobre esse filme que chega para iluminar, ainda mais, a já consagrada estrela. 

Seu engajamento e determinação foram pilares na trajetória, até o seu derradeiro ato em 2018 quando, por conta de fortes dores na coluna, fez seu último espetáculo deitada. Ainda assim fez o show continuar, mostrando que sua arte transcendia dores e dava cores à existência. Jamais se calou e, pra nossa sorte, registrou parte considerável de sua majestosa andança pela vida. Ver o filme é despertar essa saudade imensa. Beth é eterna!

Confira o trailer do filme.

Avaliação: 4.8 / 5
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Lucas de Matos

Olá! Eu quero te dar as boas-vindas à minha coluna. Sou um comunicador baiano que ama falar sobre gente, e por aqui você vai encontrar muito assunto sobre cultura, comunicação, dicas de leitura, e mais. Sou autor de 'Preto Ozado', livro que já vendeu mais de 1.600 exemplares e se tornou um minidocumentário. Viajo pelo Brasil em atividades literárias, participando de festas como FLICA, FLIP e FLIPELÔ. Falo sobre cultura para meus 22 mil seguidores no Instagram! Vamos conversar? 💬

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