Gastronomia negra do Sul da Bahia invade a ficção em novo romance de Gabriel Nascimento

O turismo gastronômico normalmente é visto pelo viés das elites brancas e de boa parte da classe média que pode viajar para longas distâncias. Mas não é e não deve ser um espaço privilegiado. O Sul da Bahia é um dos lugares mais diversos na culinária baiana e acaba de se tornar espaço na narrativa distópica do novo romance de Gabriel Nascimento, que é linguista e escritor, autor de “Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo” (Letramento editorial), doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Universidade Federal do Sul da Bahia e colunista do Guia Negro. Um dos pontos fortes de “O rio do sangue dos meninos pretos” (Editora Letramento) é a comida regional, segundo conta o autor.

“Eu decidi escrever o romance a partir das minhas próprias vivências lá em Banco Central, que é o distrito de onde venho e que também aparece no romance. Lá fazíamos muito com pouco. Embora eu tenha passado necessidades, a valorização do tempero regional sempre foi presente, desse moquecas de ovo até bolos de puba”, conta.

O Rio do Sangue dos Meninos Pretos é a história de uma caçada policial de TioZito, Maria Raimunda e Rita de Cássia. Eles resolvem fugir justamente depois de TioZito questionar o nome de um rio que era mais vermelho e mais amplo a cada ano.

“Num instante que o mais velho conta a TioZito o nome do rio, como RIO DO SANGUE DOS MENINOS PRETOS, TioZito começa a lembrar que não sabia o que era aquilo, um preto. Isso porque o romance se passa num mundo onde não há pessoas pretas”, emenda Gabriel.

As personagens só decidem fugir depois que TioZito volta de um enterro de um amigo e encontra o seu mais velho com a barriga aberta.

“Na verdade parece que eles sabem que estão correndo algum risco com aquela informação que Zelezim, esse mais velho, passou pra eles. Então decidem fugir”.

Coincidentemente ou não, o enterro do amigo era justamente por um sistema de segurança que existe naquele país, uma espécie de sistema de drones que extermina pessoas indesejáveis. A esse sistema o autor da o nome de “Os Israel”, como uma crítica direta à importação de armas do Estado de Israel.

CULINÁRIA NEGRA BAIANA EM FOCO

É durante a fuga que a culinária negra baiana entra em foco. Como o autor busca justamente apresentar um mundo culturalmente negros, sem negros, segundo suas palavras, as comidas escolhidas são justamente aquelas produzidas pelas populações negras nas piores situações de vulnerabilidade.

“O romance é também uma história da comida, de como a comida, o tempero, o sabor, tudo isso também é resistência negra no Brasil atual”, comenta o autor.

O modo de temperar é uma forma de trazer o leitor para os temperos afroindígenas no Sul da Bahia, como o trecho abaixo do romance, obtido com exclusividade apresenta:

“Aquelas gentes gostavam de comer bem. Adoravam fazer comidas temperadas onde o amor se travestia em feitiço. Dos restos dos poucos animais que eram utilizados ou permitidos ao consumo, se adicionava o limão, que tudo limpava, com temperos e refogados no ponto certo. Os fundos privilegiados das casas do campo ainda escondiam pequenas plantações necessárias ao convívio completo do mundo, como os que traziam hortelãs, coentros largos ou coentrões, coentros, alfavacas de galinhas finas e grossas que eram justamente a salvação de uma vida simulada e triste governada pelas faces horrendas daquele tempo”.

Em outro trecho, porém, o autor mostra como dor e tempero mostram resistência da cozinha regional de onde ele parte quando narra a tristeza da personagem Maria Raimunda ao cozinhar uma moqueca de ovo:

“Naquele momento mesmo ela estava cozinhando. Ao passo que cozinhava o ovo e mexia na tigela, com coentro e coentro largo, adicionava devagar o azeite de dendê, que herdou de Tide, sua avó. Ao botar dendê devagar, era como se visse o sangue de Jovã e as lágrimas também temperassem de sala comida. Silenciosas, as lágrimas mal puderam ver TioZito que chegou e ficou em pé atrás dela, talvez por minutos”.

Em momentos de crise inflacionária, armamentismo e dificuldade das pessoas pobres em consumir carma bovina, o autor traz a moqueca de ovo como um hábito de sua infância quando, durante o governo FHC, ele e sua família passaram necessidades.

“Já comi muita moqueca de ovo na vida, com coentro largo ou coentrão, alfavaca de galinha. Tudo isso me fez escrever esse texto, foi minha inspiração”, conclui.

O livro será lançado por uma campanha no Catarse já em maio e em breve estará nas instantes das livrarias, com lançamentos previstos para Salvador e São Paulo.

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Redação

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