Justiça condena estado de SP a pagar R$ 750 mil por PM seguir Caminhada Negra

O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o Estado a pagar R$ 750 mil “por dano moral coletivo e atuação discriminatória, com contornos nítidos de racismo institucional.” pelo fato de a Polícia Militar ter perseguido a Caminhada São Paulo Negra, realizada pelo Guia Negro, em 24 de outubro de 2020. A ação foi apresentada pela Defensoria Pública.

De acordo com o Ministério Público, “o nexo causal entre os atos ilícitos praticados e os danos causados foi comprovado. A atuação da polícia militar, gerou situação humilhante, e como consequência, ainda, tolheu os profissionais da empresa e as demais pessoas do grupo da liberdade de ir/ficar/permanecer, sem embaraço, em espaço público e exercer o seu direito à cultura, no seu caráter difuso, como já exposto. O dano para toda a coletividade, portanto, é inegável.”

A indenização considera a dimensão da receita da Fazenda Estadual e a necessidade de inibir a ocorrência de novas práticas discriminatórias ofensivas. “A condenação deve ser revertida em favor da população negra e recolhida a um fundo próprio, conforme prevê artigo 13 da lei da Ação Civil Pública, com a específica obrigatoriedade de vinculação do recurso para projetos culturais e turísticos apresentados em favor da população negra, a ser definido após o trânsito em julgado”, informa a decisão do juiz Fausto Dalmaschio Ferreira, proferida em 15 de abril deste ano.

O CASO

O Guia Negro organiza desde 2018 uma visitação guiada pelo centro da capital paulista, que percorre locais e monumentos representativos para a população negra, tendo como propósito, a realização de um resgate da história do povo negro na cidade de São Paulo. O itinerário completo percorrido é de aproximadamente 3,5 km, começando na Praça da Liberdade e terminando no Largo Paissandu.

Em 24 de outubro de 2020, o grupo foi abordado pela Polícia Militar do Estado São Paulo, com a aproximação de duas viaturas policiais que pertenciam à Unidade do Cambuci. A alegação dos policiais foi de que receberam ofício do Comando da PM para acompanhar a atividade em razão de monitoramento feito pelo Facebook de manifestação do movimento negro, o que foi prontamente refutado pelos anfitriões do Guia Negro que destacaram que se não se tratava de manifestação, mas, sim, um tour, realizado por uma empresa de turismo, com clientes pagantes.

O tour passou a ser monitorado por dois policiais da ROCAM (Rondas Ostensivas com Aplicação de Motocicletas), que seguiram o grupo com as motocicletas pelos pontos que iam sendo percorridos. Naquele mesmo dia e local, outros grupos, bem maiores do que aquele que participava da “Caminhada São Paulo Negra”, estavam reunidos, em razão do período de campanha política e não ocorreu qualquer tipo de abordagem por agentes de segurança do Estado.

Quando o grupo passou pela Estação Anhangabaú imaginou que se afastaria dos policiais e deixariam de ser monitorados.  Mas ao sair da estação passou a ser acompanhado pela cavalaria da Polícia Militar, dessa vez, da Unidade da República. A realização do tour foi bastante comprometida, com um constrangimento público perante transeuntes e demais pessoas que estavam de passagem ou trabalhando no local, já que os caminhantes, majoritariamente pessoas negras, foi seguido ostensivamente durante todo o trajeto da caminhada. 

Os condutores do passeio, assim como os clientes, foram submetidos à pressão psicológica e constrangimento do início ao fim da atividade, iniciada por volta das 10h e finalizada por volta das 13h. Houve ainda filmagem do tour por parte dos policiais.

OUVIDORIA

A Ouvidoria Geral da PM foi acionada pelo Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (NUDDIR) e em 3 de dezembro de 2020 houve uma reunião com o Comando Geral da Polícia Militar, em São Paulo, que não reconheceu a prática discriminatória, apenas se limitou a convidar os representantes do Guia Negro para realizarem uma aula sobre o tema do racismo estrutural e institucional.

A formação foi realizada para um grupo de 30 policiais que participavam do curso de formação em direitos humanos, não envolveu os agentes que seguiram o tour e não voltou a ocorrer. 

“Quando entramos com a ação ouvimos de muitas pessoas que não ia dar em nada, que era só racismo. Mas o Estado precisa ser punido e situações como essa não podem mais ocorrer. Esperamos que esse dinheiro possa ser usado na formação de policiais e professores sobre cultura e história negra. Vai representar uma grande vitória para o afroturismo e um marco para que isso nunca mais ocorra”, diz o fundador do Guia Negro, Guilherme Soares Dias.

A AÇÃO

Na defesa, o coordenador de Assuntos Jurídicos da Polícia Militar do Estado de São Paulo, apontou que: “o evento transcorreu em local de densa concentração de pessoas e elevado tráfego de veículos, onde a atuação do policiamento ostensivo se pautou pelo controle do tráfego’ veicular (com o intuito de evitar acidentes e garantir o fluxo da via) e a garantia da integridade física dos participantes.”

Apesar da justificativa, tem-se a indicação de outra perspectiva, por meio da qual teria sido caracterizada a caminhada turística como uma “manifestação” que traria risco à segurança pessoal dos participantes ou de terceiros ou, ao menos, com o potencial de se transformar em uma aglomeração de pessoas.

TESTEMUNHAS

Uma das participantes da caminhada Beliza Andrade, que foi testemunha do episódio lembrou que os fatos ocorreram durante a flexibilização de isolamento aos tempos de isolamento social em função da pandemia de COVID-19 e que tomou conhecimento da caminhada pela internet. Quando chegou ao bairro da Liberdade, disse ter-se aproximado de um dos organizadores, Heitor Salatiel, o qual teria sido abordado pela polícia.

A abordagem, a princípio, teria sido tranquila, mas seu teor foi considerado estranho pela testemunha: o policial teria questionado “o que vocês estão fazendo reunidos aqui?”. A estranheza veio do fato de, no momento, haver, também, outras pessoas no mesmo local, que não estava vazio.

Beliza contou, em depoimento, que os policiais passaram a “acompanhar” o evento, como se fosse “para garantir alguma coisa”, o que lhe pareceu estranho. Quando o grupo chegou às proximidades do Largo São Francisco, a testemunha se incomodou com a abordagem policial, que teria sido hostil. Ela ressaltou sua qualificação profissional, como turismóloga, e que nunca tinha experienciado um acompanhamento policial em caminhadas de turismo.

No Largo, a testemunha declarou que os policiais teriam sido hostis com o grupo e que os teriam “fechado” com suas motocicletas. Ela disse que os policiais revezaram-se conforme as localidades pelas quais o grupo passava, parecendo um esquema de segurança sobre o grupo. No fim do trajeto, no Largo Paissandu, disse ter sido indagada por um policial sobre o que o grupo estaria reivindicando. Beliza respondeu que se tratava de um passeio turístico, o que gerou estranheza no próprio policial que teria mencionado que aquele acompanhamento, desde a Liberdade, “não fazia sentido”.

Em seu depoimento, Guilherme Soares Dias ressaltou que os guias esqueceram falas, ficaram nervosos, inibidos e ao fim do percurso, foi oferecida aos participantes a oportunidade de fazer outra caminhada, pois a organização achou que os participantes não conseguiram aproveitar o programa. “A sensação foi de que fomos perseguidos. Não conseguirmos fazer o trabalho direito e tivemos crises de ansiedade”.

A caminhada aborda o genocídio da população negra, a perseguição das religiões de matriz africana e da tentativa de criminalização de várias iniciativas negras e os organizaram relatam que entenderam que estavam sofrendo isso no dia. “Nunca recebemos um pedido de desculpas formal”, afirma Dias.

Já Heitor Salatiel, que também conduzia o tour, informou que no início da caminhada, a polícia abordou perguntando se aquela era a caminhada negra e o depoente respondeu afirmativamente e informaram que acompanhariam o evento, devido a um ofício. O policial pediu o documento do depoente, que explicou tratar-se de empresa de turismo e lazer, que não era uma manifestação. O policial disse que tinha um ofício e deveria seguir o grupo.

Outra testemunha Anderson Alves Prestes da Silva, participante da “Caminhada São Paulo Negra”, afirmou ter-se sentido constrangido, com medo e pressionado durante todo o trajeto.

POLÍCIA SABIA QUE ERA UM TOUR

Da narrativa das testemunhas civis e militares, o juiz considera “incontroverso” que, desde o início, a Polícia estava ciente da natureza do evento realizado pelos participantes da “Caminhada São Paulo Negra”. A prova dos autos, segundo o juiz, indica que nenhum dos policiais, individualmente, cometeu atos ilícitos, pois todos agiram de acordo com ordens superiores.

Sobre as ordens em relação ao acompanhamento do evento, a primeira testemunha militar afirmou que determinou que fosse feito contato com o representante do grupo. Depois do contato com Heitor Salatiel, com exposição de como seria o evento, revelou ter determinado o acompanhamento do evento por duas motos. Justificou a determinação argumentando que o objetivo seria a segurança do grupo, considerando que a região central possui os maiores índices de furto e roubo.

“Se por um lado há provas suficientes de uma atuação seletiva e injustificada da Polícia Militar em relação a um grupo de turismo focado na cultura negra, não há sequer um elemento concreto a fundamentar tal atuação de forma compatível com o Estado de Direito”, afirma o juiz, na sentença.

O juiz destaca ainda que a “Caminhada São Paulo Negra” foi realizada por grupo privado de turismo. “Assim, caso houvesse real necessidade de realizar a segurança de grupo privado, os responsáveis pela promoção do evento turístico deveriam ter contratado serviço privado para segurança pessoal. A Polícia Militar sequer poderia prestar tal serviço, mediante cobrança de taxa de fiscalização e serviços diversos, em favor de pessoas individualmente consideradas”.

MINISTÉRIO PÚBLICO

Nesse sentido, Ministério Público ressalta: “Não é demais lembrar, que em uma cidade dinâmica como São Paulo, que têm inúmeros tours similares, walking tour histórico, tour pelos cemitérios, tour de bicicleta, tour de bares e restaurantes, nunca se teve notícia de acompanhamento da Polícia Militar a esses eventos da forma como ocorreu, em ações ostensivas com o emprego de viaturas, motocicletas e cavaria, constrangendo indevidamente as pessoas que participavam da atividade.”

Em suma, a justiça considera que não houve resposta afirmativa e concreta por partes dos documentos e testemunhas ouvidas em juízo para a ação policial. “As justificativas, desencontradas, oscilaram entre a necessidade de realização de segurança particular do grupo e informações da inteligência da Polícia Militar no tocante à possibilidade de se tratar de ‘manifestação’ e risco de haver ‘quebra-quebra’.”

DISCRIMINAÇÃO SELETIVA

O juiz destaca ainda que a “Caminhada São Paulo Negra”, tem por escopo o resgate da história da população negra da cidade de São Paulo, considerando se o esquecimento/apagamento da história de ocupação de bairros como o Bixiga e a Liberdade. “Trata-se de uma iniciativa pela qual um grupo, que sempre sofreu discriminação racial, busca expor, ilustrar e manter viva sua história, inserido num contexto de exercício de atividade econômica. O intuito não é outro senão a busca do conhecimento e construção da verdade, da história e cultura negras, transformando-a também em geração de riqueza econômica”, reforça.

A decisão considera, dessa forma, “a abordagem seletiva e o acompanhamento do grupo pela Polícia Militar, sem justificativa fundamentada em elementos concretos, teve o condão de lesar a condição dos negros enquanto sujeitos epistêmicos” (…) “a caracterização de uma atuação do Estado de São Paulo tendente a ocasionar, concretamente, uma injustiça epistêmica no tocante à restrição e constrangimento da iniciativa do grupo de turismo de revelar, ilustrar e propriamente construir o conhecimento da cultura e história negras no Centro de São Paulo”.

VIOLAÇÃO AO ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL

A sentença ressalta que “verifica-se violação também à legislação infraconstitucional, em específico ao Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), que, em seu artigo 1º, parágrafo 1º, inciso I, assim conceitua discriminação racial ou étnico racial: ‘[…] toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada.’”

O Estado de São Paulo, na opinião do juiz, se recusa processualmente a reconhecer que o acompanhamento da “Caminhada São Paulo Negra” se revestiu de caráter discriminatório. “Recusa esta que, caso chancelada pelo Poder Judiciário, também poderá ocasionar nova condenação internacional do Estado brasileiro” (…) “ausentes quaisquer justificativas concretas para a abordagem e acompanhamento da “Caminhada São Paulo Negra” e ciente o Estado, desde o início, do escopo e da natureza e objetivo do evento, promovida por pessoas negras, não se vislumbra outra explicação senão o perfilamento racial.

A prova documental e oral produzida nos autos demonstrou, sem margem a dúvidas, que a atividade estatal em questão representou limitação juridicamente injustificada ao exercício da atividade econômica de forma livre e igualitária pelos organizadores da caminhada, uma vez que, conforme pontuado pelas testemunhas, a presença da Polícia Militar por mais de três horas ao lado dos participantes da caminhada lhes causou constrangimento e medo, ao contrário da alegada sensação de segurança. “É o Estado interferindo ilicitamente na ordem econômica, ainda que não o perceba”.

DANOS MORAIS COLETIVOS

“Entenda-se o dano moral coletivo como o de natureza transindividual que atinge classe específica ou não de pessoas. É passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem, a sentimento e à moral coletiva dos indivíduos como síntese das individualidades envolvidas, a partir de uma mesma relação jurídica-base.” (…)  “A caracterização do dano moral coletivo se dá sem a necessidade de demonstração da ocorrência da comprovação da dor ou sofrimento psicológico”, reforça a sentença.

O juiz considera ainda que a indenização judicial não é a solução mais efetiva para enfrentamento do racismo estrutural. No entanto, trata-se de medida dotada de efeitos concretos (pecuniários) e simbólicos também importantes na reafirmação do Estado de Direito.

De acordo com a sentença, a conduta do Estado representou atitude discriminatória, com contornos nítidos de racismo institucional, em desfavor de um grupo de turismo particular que se propunha, ostensivamente, a expor a história e cultura negra, e sua tentativa de apagamento, no centro de São Paulo.

Questionada nesta terça-feira (23/4) pelo portal Metrópoles, a Procuradoria-Geral do Estado informa que ainda não foi intimada da referida decisão.

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Redação

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