Um anos depois, PM não apresentou ofício que justifique perseguição a Caminhada São Paulo Negra

Em 24 de outubro de 2020, a Caminhada São Paulo Negra, experiência turística organizada pela plataforma de afroturismo Guia Negro foi perseguida durante três horas e três quilômetros por dois policiais. Eles abordaram o grupo no primeiro ponto, na Liberdade, e disseram ter um ofício que os indicava seguir o tour que pensavam ser uma manifestação. Apesar da apresentação de documentos da empresa e da divulgação do tour, passaram a seguir e filmar o passeio.

Um ano depois, a polícia nunca apresentou o ofício que justificaria a perseguição. O fundador do Guia Negro, Guilherme Soares Dias, e o anfitrião de experiências Heitor Salatiel denunciaram o ocorrido na Delegacia de Crimes Raciais (Decradi). “Fomos recebidos por policiais brancos que tentavam minimizar o caso e davam a entender que o processo não teria nenhum resultado”, afirma Guilherme. Apesar do clima de “deixa quieto”, os dois entraram com uma ação, via Defensoria Pública, de indenização por danos morais contra o Estado e o Ministério Público pediu investigação do caso.

A Ouvidoria da Polícia Militar articulou para que 25 policiais que estudavam no curso de Direitos Humanos participassem do tour. “A imagem de policiais realizando o tour foi uma resposta significativa, mas não muda o ocorrido e, infelizmente, não torna a polícia menos racista. Ainda estamos sujeitos a outras situações de racismo estrutural”, afirma Heitor.

O caso

Elizeu Soares Lopes, ouvidor do da Polícia Militar, afirmou que os representantes do Guia Negro, que organiza o walking tour, foram vítimas de violência do Estado e pediu investigação em relação ao caso. “Vocês foram vítimas de racismo estrutural. Isso denota brutalidade”, considerou, cumprimentando a empresa pela iniciativa do passeio que conta sobre a história e cultura negra.

Já a deputada Erica Malunguinho (PSOL/SP) lembrou que as pessoas pretas estão a todo momento ensinando a vizinhança, a institucionalidade sobre o direito de existir. Segundo ela, há um princípio pedagógico nesse letramento que acaba ocorrendo. A deputada estadual afirmou ainda que é impossível desassociar o que fato à história do povo negro. Ela lembrou a teórica Beatriz Nascimento e afirmou que no século 17 toda habitação com mais de cinco negros fugidos era considerada um quilombo. “A junção de pessoas pretas sempre causou cautela no Estado”, considera.

Já o Código Penal de 1835 versava sobre o “valia couto de bandidos”. “É por isso que é difícil desassociar corpo negro em quilombo e espaços de rua. Precisamos letrar a sociedade brasileira”, defende. Malunguinho afirmou que a perseguição ao tour é “filha do racismo” e que antes a população negra era considerada fugitiva do sistema escravocrata e hoje pessoas negras não podem exercer livremente atividades como o turismo. “Mexe com fato corrente de corpos pretos em espaços conjuntos é motim, vadiagem. Não podemos deixar isso sem reposta. A resposta padrão da assessoria denota o racismo estrutural, que eles não sabem o que é”.

A deputada defende reparação aos empresários, além de revisar a prática de abordagem policial. “Se fossem dez, 20, 30 brancos percorrendo monumentos isso não ocorreria”, avalia. Dessa forma, ela avaliou que não dá para a população negra já sair culpada de casa. “Isso é inadmissível. Temos que garantir que esses e outros casos provoquem novos protocolos na polícia”, afirma.

O Ministério Público, por sua vez, instaurou inquérito e investiga o caso. O requerimento foi feito pelo promotor Eduardo Valério no âmbito de inquérito civil instaurado em 29 de novembro para apurar conduta que sugere a prática de racismo. Na portaria de instauração do inquérito, Valério considera que o fato revela “despreparo da Polícia Militar para agir de modo minimamente adequado ou, o que se mostra mais factível, manifestação expressa de racismo institucional, decorrente do racismo estrutural”. E segue: “(…) a segurança pública, numa ordem democrática, reclama e pressupõe a plena fruição de direitos por todos os cidadãos. As liberdades de reunião e de empreender não podem ser limitadas por riscos imaginários à segurança pública”.

Em reunião com os empresários que foram perseguidos, O coronel Alexandre Gaspar Gasparian, coordenador Operacional da PM, admitiu que a “inteligência” da polícia identificou a caminhada como uma manifestação e enviou um ofício. A aspa na palavra inteligência foi dele próprio. Mas disse que o setor faz esse acompanhamento das redes sociais e que qualquer aglomeração deve ser acompanhada. O tal ofício não foi exposto. Ele considera que não houve racismo e que “não foi por A ou B que foram seguidos”.

A dra. Diva Zitto, presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil OAB/SP, questionou se outros passeios turísticos já foram seguidos. A resposta foi negativa (…). Os empresários lembraram que a presença policial denota que há algo errado e quiseram entender porque mesmo após três horas, os PMs que os acompanharam não entenderam que era um tour. “O racismo estrutural está em não entender que um evento chamado Caminhada São Paulo Negra pode ser um tour, como é de fato e é anunciado, inclusive com preço de venda. E não perceber que esse passeio assim ocorre, pois os lugares que percorre não são identificados como turísticos. Vem, justo daí, a importância”, afirmou Guilherme.

Segundo o coronel Gaspariano, foi passado para o comando uma orientação dizendo que a Caminhada São Paulo Negra é um passeio e não uma manifestação e que, a partir de agora, só vão acompanhar o grupo se a empresa solicitar a presença da PM. 

O coronel Leandro Gomes, diretor de Polícia Comunitária e de Direitos Humanos, afirmou que a polícia quer se aproximar da sociedade e construir relação, criando espaços para iniciativas como a do Guia Negro. “Não conhecíamos o tour, mas agora queremos saber mais”, disse.

Já o ouvidor da PM em São Paulo, Eliseu Soares, afirmou que a instituição precisa avançar e reconhecer que há assimetria na conduta entre pessoas brancas e negras. “A lei da vadiagem é cultura que herdamos. Tensões são resolvidas com diálogo e instrumentalizam políticas públicas”, afirmou. 

Essa história não termina aqui. Nossos passos vêm de longe e não estamos sós. A Caminhada São Paulo Negra, idealizada e realizada pela @guianegro, vai potencializar cada vez mais nossas histórias e a cultura preta! E há outros coletivos fazendo o mesmo em São Paulo e outras cidades. Então, que a gente possa seguir e ver cada vez mais essas narrativas entrando no imaginário da cidade.

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Redação

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