O concurso cultural para a criação do Memorial dos Aflitos de São Paulo, fomentado pela Secretaria Municipal de Cultura, foi finalizado. O projeto escolhido com valor de R$ 320 milhões, no entanto, precisará de adequações, uma vez que previa demolição parcial da Capela dos Aflitos, que é tombada com patrimônio histórico pelo município e pelo Estado de São Paulo.
Desde 2018, quando foram descobertas nove ossadas ao lado da Capela dos Aflitos, onde funcionou um cemitério dedicado a pessoas negras e indígenas nos séculos 17, 18 e 19 mais de 70 representantes de entidades, coletivos e militâncias aguardam pela concretização dessa luta que visa resgatar memórias indígenas e negras no território da Liberdade.
O resultado do concurso, publicado em Diário Oficial da Cidade em 20 de abril de 2023, apresenta pormenores dos três projetos finalistas, critérios de avaliação e pontuação em cada critério. Entre eles, o projeto intitulado “azul” foi o contemplado pela comissão julgadora.
Contudo, o projeto vencedor prevê duas demolições na Capela dos Aflitos: o velário e a área em que encontra-se a loja de velas e artigos religiosos, o banheiro, a copa e a sacristia. Ainda na publicação do Diário Oficial, é feita ressalva, em dois momentos, da impossibilidade de demolições no prédio da Capela uma vez que este é tombado na esfera municipal pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) e na esfera estadual pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat).
Desta forma, o projeto vencedor ainda passará por revisão, readequação e, posteriormente, subordinação a nova apreciação pela comissão julgadora como prevista na publicação. Para a União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca), o futuro Memorial dos Aflitos e a Capela Nossa Senhora dos Aflitos, apesar de juridicamente pertencerem a entidades diferentes, fazem parte de um mesmo complexo e precisam ser entendidos na interlocução entre memória, patrimônio e religiosidade.
A Unamca faz seis considerações sobre o projeto vencedor:
1 – “A previsão de demolição de parte da capela, vai contra o fato de ela ser um patrimônio tombado e trariam um significativo impacto negativo na comunidade à qual o projeto propõe uma reparação.
2 – No projeto não consta sequer a menção aos povos indígenas. É fundamental ressaltar, e isso faltou no texto do projeto vencedor, que o Cemitério dos Aflitos era também destino final dos povos originários da cidade. Dessa forma, o Memorial resgata não só a memória negra e sua territorialização no bairro da Liberdade, mas também a memória indígena. Esta união precisa estar nomeada, representada e ressaltada nessa instituição que se propõe reparadora.
3 – O projeto prevê a utilização de terra pertencente ao antigo cemitério para construção de paredes em taipa. Essas terras, assim como todas as outras de lugares denominados “campo santo”, não podem ser retiradas para isso sob risco de se cometer mais uma violência ao se tentar reparação. As terras de um cemitério devem permanecer no “campo santo”, sem finalidades estéticas ou expositivas. Na impossibilidade de se manter no local a terra retirada para as fundações, será necessário abrir consulta junto a representantes religiosos, sobretudo de matrizes africana e indígena, para o procedimento mais adequado.
4 – O projeto prevê também a exposição dos remanescentes humanos lá encontrados. Assim como colocado no ponto anterior, essa destinação se configura como uma nova violência. Há que se fazer consulta sobre a forma mais adequada de tratamento, quem sabe a criação de um mausoléu para que o rito fúnebre se consuma.
5 – Importante salientar que este espaço, em que se dará um processo educativo e exposições, precisa contar com uma reserva técnica, inclusive para arquivo de documentação advinda da análise dos remanescentes humanos ainda em processo por instituto de arqueologia.
6 – Entendemos que parte das atividades oferecidas, como recebimento de grupos turísticos e escolares (educativo) e festividades em celebrações diversas com presença de religiosidade popular, povos originários e povos negros, serão conjugados com o Memorial. Dessa forma, é importante que os sanitários e área e vestiário sejam previstos para tais usos.
A Unamca ressalta ainda a importância do momento em que a luta do Movimento dos Aflitos avança mais um passo. “Aguardamos as adequações do projeto e apreciação da comissão julgadora”, afirma, convidando a comunidade para reuniões na capela dos aflitos para debater sobre a construção do ponto de memória na cidade.
O QUE DIZ O PROJETO VENCEDOR:
A criação do Memorial dos Aflitos, no Sítio Arqueológico Cemitério dos Aflitos, bairro da Liberdade, São Paulo, representa uma oportunidade única e fundamental de reparação histórica a grupos sociais cronicamente excluídos da história oficial da cidade e de suas políticas públicas, em especial a população negra, resultado da cultura escravagista que marca, até os dias de hoje, a formação da sociedade brasileira.
O estreito e longo terreno onde será construído, resultante do loteamento do antigo cemitério, situa-se estrategicamente adjacente à sua pequena Capela, único remanescente preservado do conjunto original. Inaugurado em 1775 pela mitra diocesana e desativado em 1858, ano de inauguração do Cemitério da Consolação, primeiro cemitério público da cidade, era delimitado, aproximadamente, pelas atuais ruas dos Estudantes, Galvão Bueno, Glória e Radial Leste. Este cemitério a céu aberto era reservado para o sepultamento dos Aflitos, particularmente, uma população segregada: indigentes, pessoas pobres, negros escravizados, livres ou forros que não pertenciam à Irmandade do Rosário e os condenados à morte na forca, conhecidos por supliciados.
O Memorial proposto é fruto da longa e árdua luta do movimento negro para que tenha sua história resgatada, reconhecida a valorizada, um espaço destinado à pesquisa e investigação, ao debate público, amplo e democrático, à afirmação cultural, à conquista de visibilidade e representatividade, ao combate ao racismo por meio da construção e difusão de conhecimento.
Para tanto, concebemos esse novo lugar de memória a partir da identificação e demarcação do território do antigo cemitério redescoberto, através de um percurso contínuo que inclui o Beco dos Aflitos, o adro da Capela e atravessa livremente o lote até a calçada da Rua Galvão Bueno, vencendo o desnível de quatro metros entre uma extremidade e outra.
Dalí, será possível novamente avistar a torre da Capela, elemento que norteia e estrutura toda a organização das
atividades e de circulação necessárias. Assim, são criadas duas pequenas praças de acesso: uma, na cota mais baixa, ao redor da Capela, hoje sufocada por construções, oferecendo-lhe respiro e o devido destaque visual, com especial atenção à sua torre; outra, na mais alta, junto à Galvão Bueno, como espaço de transição entre o ambiente urbano agitado e ruidoso e o espaço interno contemplativo e reverente.
O programa de necessidades se estabelece de forma hierárquica em três níveis: no térreo inferior, extensão do adro, um ambiente de encontro, convivência e debates, abriga também, na extremidade oposta, as áreas administrativas, de serviço e apoio; no térreo superior, um amplo espaço de recepção e exposições; e, acima, um mezanino para reuniões e eventos, oferendo um simbólico mirante para a Capela dos Aflitos.
Buscando construir um espaço mais rico, diverso, autêntico e instigante, três elementos fundamentais da obra devem ser objetos de intervenções a serem desenvolvidas por artistas convidados: o desenho do piso que atravessa o Beco e o Memorial; um oratório externo dedicado a Chaguinhas no local do antigo velário; e, um mural a ser instalado na fachada da Galvão Bueno, anunciando o significado profundo daquele lugar. Tais contribuições podem ser expressas por meio de grafismos ou de representação pictórica da história do local,
preferencialmente com uso de materiais tradicionais da arquitetura vernacular, como terra,
pedra, madeira, metal. Por seu papel potencialmente revelador, transformador e educativo, de identidade e memória, o Memorial dos Aflitos será um marco na história da cidade e da nossa sociedade.
MEMORIAL DESCRITIVO – EMBASAMENTO TEÓRICO E TÉCNICO
A presente proposta para a construção do Memorial dos Aflitos foi concebida com base nas diretrizes, recomendações e melhores práticas de preservação contidas nas Cartas Patrimoniais, a partir de critérios conceituais e técnicos que compreendem o bem cultural em sua integridade e complexidade.
De modo a atender às exigências metodológicas e de manejo do Sítio Arqueológico Cemitério dos Aflitos, as escavações necessárias deverão ser acompanhadas por profissionais técnicos especializados, a fim de proporcionar a complementação e o aprofundamento das pesquisas já realizadas.
Junto à Capela são propostas duas pequenas demolições pontuais de elementos espúrios: o atual velário, que apresenta precárias e inadequadas condições de conservação e funcionamento; e, o anexo à direita da edificação original, de baixa qualidade construtiva, o que permitirá melhor integração com o Memorial. Tais demolições oferecerão a oportunidade de liberar o espaço ao redor da igreja, criando pequenas praças e ampliando as suas visuais. Um novo velário será construído no acesso inferior do Memorial, junto do ossário.
Os necessários muros de contenção das duas divisas laterais do lote serão construídos em concreto ciclópico, remontando às fundações de pedras das antigas construções locais. Sobre os mesmos, serão erguidas duas empenas de taipa, com técnica contemporânea, feitas com o solo da própria escavação do terreno. Essas duas paredes, com 8 metros de altura em relação à Rua Galvão Bueno e 12 metros em relação à Rua dos Aflitos, conformam o espaço único e integrado do Memorial. A altura constante desses muros se justifica em função do desejo de garantir a vista desobstruída para a torre da Capela a partir do acesso da rua.
A estrutura e o acabamento do mezanino atirantado, forro e da cobertura serão feitos em madeira, sistema construtivo leve e de rápida montagem, proporcionando precisão, eficiência, agilidade e limpeza na obra, além de evitar desperdício de material. A laje do piso de acesso superior apoiada sobre pilares em concreto, formará um espaço no nível da rua livre de qualquer interferência, com generosa perspectiva voltada à Capela.
A cobertura será em telha metálica com duas águas no sentido transversal, e duas descidas de pluviais em cada extremidade da construção. Junto às paredes de taipa, frestas longitudinais banharão de luz zenital os espaços internos, acentuando as texturas da materialidade adotada.
Assim, todos os ambientes receberão iluminação e ventilação natural, oferecendo maior conforto ambiental.
As fachadas das duas extremidades serão envidraçadas, proporcionando permeabilidade visual entre o espaço urbano e do Memorial. Junto ao acesso do térreo inferior, esse fechamento é feito em diagonal, de modo a refletir a torre da Capela para quem se aproxima a partir do beco, uma vez que o espaço interno será mais escuro do que o externo.
No acesso superior, o fechamento é recuado, a fim de permitir a criação de um fosso inglês para iluminação e
ventilação natural do subsolo. O fosso totalmente permeável, junto com a praça na lateral da Capela somam os 15% exigidos pela taxa de ocupação e permeabilidade. Uma plataforma hidráulica conectando os três pisos garante total acessibilidade a todos os espaços internos.
O piso do beco, do adro e do percurso até a rua, incluindo o piso do acesso junto à Galvão Bueno, serão definidos pelo projeto artístico a ser desenvolvido, possivelmente um mosaico em pedra ou ladrilho hidráulico. Os pisos internos serão de madeira. O encontro do piso interno com as paredes de divisa em concreto ciclópico será de terra batida, remetendo à escavação arqueológica que dá origem ao próprio Memorial. A materialidade proposta dialoga em equilíbrio e harmonia com a Capela dos Aflitos.
Entre os itens não incluídos no projeto, estão o Restauração das Fachadas da Capela dos Aflitos, Mobiliário, Marcenaria e Serralheria Expositiva, Iluminação Expositiva, Ar Condicionado, Projeto Museológico, Projeto Expográfico, Iluminotécnica Expositiva, Comunicação Visual.
O valor da proposta é de R$ 320.556,00.
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