Nívia Luz: a ialorixá turismóloga e viajante da Bahia

Feminista, pró-LGBT, a mãe de santo foi para a Tailândia, conheceu templos budistas e sonha com novas viagens

Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel

Nivia Luz foi escolhida aos 32 anos para se tornar ialorixá, a mãe de santo na nação ketu do candomblé, substituindo a avó, mãe Santinha de Oyá, no Terreiro Ilè Asè Oyá , de Salvador, em 2015. Hoje, aos 35, continua sendo uma das mais jovens mães de santo e começa a despontar como uma das vozes modernizadoras de uma religião ancorada na ancestralidade. Nivia é turismóloga, faz mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), gosta de viajar, usa as redes sociais, é feminista, pró-LGBT e uma das vozes que lutam contra o racismo e a intolerância religiosa, já que no Brasil as religiões de matriz africana são estigmatizadas. “Eu estudo no mestrado sobre a relação do Estado com as religiões matriz africanas, da perseguição à exaltação. A perseguição por conta do período onde os terreiros foram proibidos, ao mesmo tempo a exaltação quando há uma virada e surgiu a cultura do turismo e vira objeto de comércio, de abertura para que atrair as pessoas”, afirma.

O terreiro que ela está à frente abriga também um bloco afro, o Cortejo Afro, conduzido pelo seu tio, o artista plástico Alberto Pitta. Isso significa que durante o carnaval Mãe Nivia pode ser vista sentada em sua cadeira em cima de um trio elétrico acenando para os foliões. Neste ano, o bloco homenageou Oxalá, o maior dos orixás. “A gente está nas ruas, porque isso é ato político. Você está em uma cidade contraditória, onde por mais que sejamos a maioria, querem nos tratar como minoria. E o carnaval, para mim, é um momento de representar os pretos como merecem”, considera.

Antes de assumir a função, Nivia tinha feito uma viagem pela Tailândia, onde ficou impressionada como o budismo, em que a tradição e a modernidade andam juntos. “Eu tenho entendido o candomblé dessa forma também, inclusive, como uma filosofia. Afinal, não sou uma ialorixá porque estou dentro desse terreiro, sou ialorixá 24 horas, todo os dias. Isso é uma filosofia”, classifica.

Confira a entrevista:

O CANDOMBLÉ AINDA É ESTIGMATIZADO?

Há uma imagem forjada nessa Bahia de todos os santos, de todos os Orixás, você quer entender o que é Bahia, vá na festa do Senhor do Bonfim, e aí você vai compreender. Porque antes você tinha o hábito da igreja, os portões abertos, e a baianas entravam e hoje não tem.

FESTA DO BONFIM

Ir à festa do Senhor do Bonfim é ir cultuar o Senhor do Bonfim, não é Oxalá (como se faz no sincretismo). Eu tenho isso muito tranquilo. Se eu quiser sair, me divertir, entrar na igreja é uma coisa. Estou indo fazer uma coisa ligada ao catolicismo, e não ao Candomblé, não tenho nada contra as pessoas que vão, mas eu aprendi sempre a fazer essa separação, então, eu também não me obrigo a estar nesses lugares, eu acho que a gente tem que fazer as leituras corretas das coisas.

FESTA DE YEMANJÁ

Yemanjá é a única festa que não é sincretizada, mas aí você entende o racismo quando a prefeitura coloca aquilo como 2 de fevereiro, como ocorreu esse ano. Quer dizer, tem uma relação política, porque é o PSL com Democratas, muitos têm uma tentativa de negação, porque ninguém que está ali vai cultuar nenhum santo da igreja católica. As pessoas vão por causa de um Orixá, mesmo com aquela imagem branca, mas ainda assim é um Orixá que de matriz africana. Aí vem o Estado e coloca esse outro nome, tentando suavizar uma imagem de uma festa, que por si só caminha. Quem foi viu, que o povo do terreiro vai, justamente para tentar delimitar isso.

TURISMO EM TERREIRO

Quando estava na faculdade, no quarto semestre, surgiu uma visita para um determinado terreiro. Eu tomei um susto, uma visita para um terreiro? Eu não estava familiarizada com aquela história, aí questionei, mas fui. Já conhecia o lugar, as pessoas da casa, mas fui na perspectiva que me venderam e ouvi tudo, fui muito bem acolhida. Mas comecei a questionar se foi confortável para mim, me ver na posição do observador, e ai no meu TCC eu escrevi sobre os impactos das atividades turísticas nos terreiros. Fui me aprofundando e vendo que tem vários lados: tem o lado da pessoa que entra no terreiro e nunca teve a oportunidade, não teve uma referência e muitas vezes ela vai se encontrar nesse lugar. E aí, tem pessoas também que sabem como te acolher e vão desconstruir, desmistificar muita coisa. Mas também tem o outro lugar que é essa relação meramente comercial, que as agências, muitas vezes, impõem. O candomblé, o espaço físico da religião, é privado, mas para uma conotação pública. A gente tem uma frase aqui que diz “caruru não se convida!”. Nessa leva, entra essas pessoas, esses agenciadores, que muitas vezes cobram caro do turista. Só que a pessoa quando entra, não vai com o pensamento de que está em um espaço religioso. Ela entra, muitas vezes, com o pensamento até que está em um show folclórico. E ela vai comer nesse lugar e não vai ter um retorno para aquela casa. Ela vai participar da celebração, mas tem gente que não sabe nem como se comporta. Algumas entram trajadas de forma desrespeitosa. Já ouvi casos de visitantes que vão da praia, com saída de praia para dentro do terreiro. Ela vai fotografar mesmo sabendo que não é permitido, porque não tem uma relação de respeito, só tem uma relação de uso e de abuso. Eu acabei me especializando em Turismo, mas trago todos os questionamentos, porque independente na minha profissão, eu sou de Orixá, minha essência é essa.

RECEBE TURISTAS?

A chance é mínima, só se me pegar de surpresa e nos causa um incômodo muito grande. Mas quando você tem pessoas na cidade que são de candomblé, que são agentes de turismo que fazem os roteiros, que vem, que explica, se preocupa, podemos receber. Porque pode ser educativo, contribuir para a casa de forma positiva, você desconstruir esse imaginário, as coisas ruins que nos colocam. Mas o que eu não acho legal e o que eu evito fazer aqui, é dar esse caráter de algo que possa ser comercializado, porque religião nenhuma pode, nem deve. Eu já ouvi relatos absurdos de guias dizendo assim: “Ah, a gente contribui, eu mando o pessoal dá um dinheiro para comprar uma cerveja”. A forma que coloca denota tão pouca relevância, que acha que é qualquer coisa, mas é um espaço sagrado, é um templo. Porque quando você é católico e vai igreja e nem sabe porque, mas se curva e faz o sinal da cruz. Você tem um respeito. E porque quando você entra nesses lugares, não tem, então também cabe a nós essa educação. Na festa de Oxum uma agente me ligou porque estava com um grupo. Perguntei se ela era daqui, e era Argentina. E eu falei: se a senhora quiser vir, assistir partilhar, tá convidada, mas o seu grupo, nessas condições, não, porque eu não preciso de telespectador. Necessito de pessoas que respeitem a nossa religião, não precisa nem ser tão simpática, mas se respeitar já está bom, porque durante muito tempo a gente foi colocado em uma arena para que as pessoas nos aplaudam. As nossas orações são cantadas, a nossa dança é a relação com tudo que temos de mais importante que é a terra, se você respeita, você compreende isso. A gente vai dialogar de todas as formas, porque eu não sou obrigada a receber pessoas que não me respeitam.

PRÓXIMO DESTINO

Butão. Tem lugares que eu olho e gosto. Parece uma escolha esquisita, mas dou uma pesquisada e penso que eu me daria bem nesse lugar. Ainda não tenho previsão de ir pra lá, mas eu já vou viajar, tenho uma agenda extensa de viagens esse ano.

NEGRA VIAJANTE

Eu acho que aqui em Salvador não é comum, porque as pessoas me encontram e sempre falam: nossa, você anda sempre viajando. E, às vezes, eu nem estou viajando. Quando você pega uma ponte aérea para os Estados Unidos, você tem mais chance de ver preto do que aqui em Salvador, isso é impressionante. E eu acho que é uma sensação de independência tão grande. Eu tenho esse ar de liberdade, eu não consigo me imaginar em nada que me prenda. Mesmo sentada em uma cadeira do terreiro, mas isso não me prende, eu estou lidando com isso, com o sentido de liberdade.

Quando eu fui para o Camboja, entendi o sentido da palavra exótico. Porque aqui na Bahia, o exótico é uma conotação racista, não sei como a gente pode ser exótico nesta cidade. Mas quando eu estive lá, foi a primeira leitura que fiz da palavra sem esse peso daqui. Eu não encontrava maquiagem para a pele negra. O país ainda vive o processo de pós-guerra, então tem um monte de problemas. Eu fui de carro e quando parei para tomar um café, fiquei do lado de fora do lugar perdida nos pensamentos, e tinha um homem, que acho que era morador de rua, que eu não sei se ele achou que eu era uma estátua ou uma aparição. Ele não parava de me olhar e não saiu dali até eu me mexer. E aquilo não foi agressivo comigo, os Tailandeses também são discretíssimos. Mas ser mulher negra é muito complicado, não tem como você se esconder, todo o lugar que eu chegava as pessoas paravam para me olhar. Era muito difícil encontrar negros, então, eu era o sempre alvo das atenções. Eles olhavam tudo o que eu fazia, comentavam, olhavam, riam. E eu lembro, que uma policial me viu e falou como eu era bonita, me elogiou bastante. Mas você percebia que era aquelas pessoas que riam, porque achava realmente que era exótico. Então, você tinha um olhar do diferente.

TEMPLOS BUDISTAS

Há um centro que é para o turista e os templos. Quando descobri os templos que eles frequentam, eu fui. E aí você compreende essa concepção de religiões muito próximas. Esse templo que fui, é pouco turístico e comecei a compreender a relação que eles têm com a morte, a entender o budismo muito mais porque é uma relação ancestral, assim como nós temos com o candomblé. Tudo é muito próximo, muito ligado, a gente fala língua diferente, mas a coisa é a mesma. Foi um lugar que eu me senti melhor. Você volta com outra compreensão. O mundo se comunica. Em Salvador, a gente tem potencial para ser muito maior. Então, eu acho que a gente precisa ter uma compreensão maior da nossa força, desse nosso lugar e do nosso papel.

O QUE É SER MÃE DE SANTO?

É se despir de toda e qualquer vaidade, uma entrega. Eu não quantifico nada, também não sou de racionalizar muito as coisas. Mas quando entendi que tinha essa função, brinco que tentei fugir viajando para tudo quanto é lugar e o Orixá me trazia de volta. Quando eu entendi o que eu ia assumir, entreguei o meu coração e não me arrependo. Porque isso é ser feliz. Não me coloco no lugar de ser maior ou melhor que ninguém, até porque todas as mulheres que vieram e ficaram, são potentes. A gente tem que ter milhares de ialorixás, de Mãe Menininha, de mulheres pretas, a gente tem que ter Michelle Obama e a gente não tem que ter um ar de comparação. Eu estou no lugar da minha avó, mas não quero ser top em nada, eu quero ser top, mas com todas as minhas irmãs juntas, viver de fato a sororidade que a gente tanto fala, viver esse empoderamento. Então, uma ialorixá vai andar de mãos dadas com a tradição e com a modernidade, trazendo as questões do agora que são questões importantes e não podemos fugir. A gente está falando de feminismo, homofobia, machismo, pensar a relação dentro das casas de axé, pensar o trato com as mulheres. É uma religião que tem uma forma matriarcal muito grande. A gente precisa pensar tudo isso, porque temos um espaço de acolhimento, a gente receber, com amor e cuidado. Porque a gente está nessa terra, nesse plano, neste lugar, então a gente não sobrevive, a gente vive e vive bem. Não é à toa que o bloco Cortejo Afro traz o slogan “elegantemente sofisticado”. Não tem quem nos negue, se a gente acredita que é capaz.

Colaborou: Eloisa Ribeiro da Silva

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Redação

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