Um dos conceitos que marcam o modernismo brasileiro é a antropofagia cultural. Comer referências em todos os pratos, regurgitar o que não interessa, e colocar o nosso próprio tempero. Esse conceito, antes de receber tal nome, já era praticado por Exu. Por essa razão, nada mais simbólico do que o Museu de Arte Moderna da Bahia para receber a estreia de ‘Thank You Exu’, a nova performance do escritor Nelson Maca.
No dia 15 de abril (sábado) o espaço Flamboyant foi palco para a intervenção que ocupou os seus quatro cantos. Antes do início, Maca “dirigia” o público sobre onde podia ou não se localizar na ambiência, e muitas pessoas acompanharam do parapeito do andar superior, incluindo o cineasta Pola Ribeiro, diretor do Museu. O número é acompanhado de outros artistas, numa perspectiva de múltiplas linguagens: Lúcia Santos na poesia, DJ Gug na música, e Lee27 no grafite.
As poesias são permeadas pelas simbologias do universo do orixá. Início, caminho, tesão, fecundação e criação passam por essa “boca do mundo” que se repete na voz potente de Maca. “Comigo ninguém pode”, “garra de bicho, carrapicho, xique-xique” são outros versos que são ditos de forma insistente e concomitante, num estilo já característico. Em sua performance ‘Tabuleiro Bélico’, acontece o mesmo com os versos “a minha pele é preta, a minha preta é preta”.
Talvez seja essa uma estratégia de fazer a palavra e o conceito se corporificarem ao leitor/ espectador. Outra marca da performance de Maca é o grito. Sempre presente, é uma extensão da poesia que faz acordar, assustar, levantar e levitar. O movimento do artista é quase ininterrupto: senta, soergue, deita, lava o espaço com as quartinhas, arremessa uma cadeira. Ao passo que Lee27 cria obras ao vivo sobre Exu, Gug une seus beats ao cocorocar de um galo e a sinos, enquanto Lúcia declama sentada.
Tudo isso é ocupação, desestabilização e provocação do espaço. Afinal, trata-se do orixá das movências, que sempre esteve presente nas produções macanianas. Este, que é o mais baiano dos paranaenses, tem uma caminhada longeva na literatura, com ênfase nas temáticas de cultura negra, e autodenominou-se ‘Poeta Exu Encruzilhador dos Caminhos’ em seu livro Gramática da Ira (Blacktitude, 2015).
Na performance, Nelson fortalece e ressignifica o seu padê, mesmo sem a farofa. O ritual tem a finalidade de presentear o orixá, alimentando-o. É o padê poético e performático de uma arte comprometida com a ancestralidade, o agora e o futuro. Não por acaso, ao final da apresentação, Nelson ofereceu ao público frutas num recipiente de barro. Eu, que não sou besta, comi desse axé.
A intervenção é fruto do livro, ainda em processo de finalização e que será lançado no segundo semestre, escrito durante a residência de Nelson no Instituto Sacatar, em Itaparica. Na experiência, o poeta pôde aprofundar seus processos de escrita e performance com base no orixá, as encruzilhadas e seus desdobramentos, fortalecendo a desmistificação da ideia racista que coloca Exu relacionado ao diabo. Espero que o movimento do Universo espraie essa palavra de caminho, verdade e de vida. Laroyê!
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