Tornar-se negro no turismo brasileiro

Pela primeira vez depois de 42 anos de vida, estou usando tranças. Pode parecer uma informação simples para começar um texto, mas para uma pessoa negra como eu, com mais de 20 anos de carreira no setor do turismo, com atuação no atendimento ao cliente, reuniões, eventos presenciais, esta se torna uma grande conquista. O visual de pessoas negras sempre foi questionado direta ou indiretamente quando não estava em um determinado “padrão”, que na maioria das vezes não era condizente com as nossas características físicas naturais.

No meu início de carreira era praticamente impossível um negro trabalhar com cabelo crespo grande (black power) ou de tranças, principalmente, em áreas de atendimento ou em cargos de gestão. No Brasil, geralmente nós, pessoas negras, temos duas etapas de convívio social: descobrir-se negro e tornar-se negro. A descoberta costuma ocorrer por alguma situação de racismo que você passará sem saber o motivo, especialmente, na infância.

Após esta descoberta, dolorosa na maioria das vezes, você terá opções se estiver na adolescência ou já adulto: tentar (sobre)viver ignorando que é negro e aqui não cabe nenhum julgamento por fazer esta opção ou tornar-se negro, se emponderando de sua ancestralidade, tendo orgulho da sua cultura, por meio da descoberta das suas origens e história do seu povo, aquelas que nunca foram contadas da maneira correta. E a partir deste momento, sua vida toda muda, inclusive a profissional.

Quando me descobri negro no turismo, foi pela ausência de pessoas como eu, parecidas comigo, em especial, quando fui atuar em vendas, na qual atuei por mais de 12 anos dentro da hotelaria e turismo. Nas convenções de vendas, nos eventos ou reuniões que participava, geralmente era o único e com passar do tempo me gerava um incômodo inconsciente, de não me sentir pertencente a aqueles ambientes. Começo a notar que a pessoas que se pareciam comigo estavam em sua maioria nos cargos iniciais.

Tive também alguns gestores que já fizeram solicitações ou orientações diferentes dos meus colegas de equipes brancos, tratamento diferente, que só depois de muito tempo vim entender o motivo. E em todo este tempo, nunca trabalhei com uma mulher negra na equipe de vendas que usasse tranças. Por que esta informação é relevante? Mulheres negras são a maioria da população brasileira e em 12 anos de atuação, nas principais empresas da hotelaria ou turismo, era impossível não ter uma profissional negra apta para ser minha colega de trabalho… algumas podem até ter tentado, mas, com certeza, foram eliminadas no processo seletivo, pois infelizmente, ainda hoje, poucas empresas do setor têm recrutamento inclusivo.

Decido me tornar negro quando resolvo falar sobre o racismo no turismo brasileiro, que gera invisibilidade dos poucos profissionais que são gestores ou lideranças no setor, que não respeita a nossa cultura e história em destinos ou na hospitalidade no turismo nacional, fora o quanto o racismo nos afeta como turistas ou profissionais negros do mesmo. E já rejeito aqui a “romantização ” ou ” heroísmo ” quando falo sobre decisão pessoal e profissional, porque combater o preconceito racial não é “bonito”, tem muita dor e injustiça.

Minha credibilidade profissional foi questionada ou diminuída, a empregabilidade ficou severamente ameaçada e em um setor de gestões tradicionais como são no turismo brasileiro, propor estas mudanças foi praticamente declarar uma “guerra fria”, pois nunca houve a intenção de falar sobre o problema e ter ações para resolvê-lo. Mas apesar de todos estes desafios, não me arrependo nenhum pouco desta decisão, praticamente a melhor da minha vida.

Ser negro tanto na minha vida pessoal como na profissional tem sido uma das maiores alegrias da minha vida, propósito e realização dia após dia, conquista após conquista. O afroturismo mudou minha vida para melhor e poder contribuir individualmente em prol do coletivo, para que cada negro que desejar ter uma experiência turística ou ter uma carreira profissional no turismo sem racismo me motiva a seguir lutando juntos aos meus para promover esta “abolição ” para população negra no turismo.

Agradeço aos meus ancestrais , ao Orixás e a todos que nos protegem por ter alegria de me descobrir negro, pela sabedoria de cada escolha e ação me tornar negro a ponto da grande felicidade de escrever este texto sobre o ubuntu de ser negro.

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Hubber Clemente

Negro, paulistano, que ama sua cidade, principalmente o centro, local de importância histórica e ancestral para o povo negro, onde também fica sua escola de samba do coração, a Vai Vai. Hoteleiro por vocação e paixão, com mais de 22 anos de carreira no setor. Ativista, militante, divulgador do AFROTURISMO como caminho de inclusão racial, diversidade, resgaste histórico e conexão ancestral por meio do turismo, visando uma sociedade melhor e a mais justa. Fundador da iniciativa Negros e Pretos Afro Turismo Afro Hotelaria, Co fundador Papo de Hoteleiro ,integrante da comunidade de inovação Inovadores Inquietos, Coletivo pelo Afroturismo, do Comitê da Diversidade no Turismo e apoiador de parcerias do Coletivo Quilombo Aéreo

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