Antes de Paulo Freire, existiu Amílcar Cabral

Desde que Heródoto (484-425 aC) chegou ao Kemet (como se chamava o Egito e que significa Terra Negra), gregos têm feito a travessia do mediterrâneo em busca de conhecimento no continente africano. De fato, até hoje, ainda existem muitos gregos morando no Egito. No entanto, mais recentemente, os números diminuíram de mais de 400 mil na década de 1950 para cerca de 10 mil nos dias atuais.


Existe uma linha de argumento decolonial que acredita que a filosofia grega é, na verdade, uma reinterpretação da sabedoria egípcia do norte da África. Portanto, não é surpresa saber que os europeus coletaram e utilizaram nosso conhecimento para ampliar sua visão de mundo.

Recentemente, muitos acadêmicos apontaram suas lentes para a vida e o trabalho de vários pensadores e ativistas africanos que estiveram na vanguarda das guerras decoloniais pela independência do continente.

Embora nomes como Aimé Césaire e Frantz Fanon sejam frequentemente mencionados, os intelectuais e ativistas africanos lusófonos têm recebido atenção limitada, especialmente no mundo anglófono.

Talvez nenhum nome seja mais importante e influente no âmbito lusofônico africano que Amílcar Cabral, e não podemos falar de Paulo Freire sem mencioná-lo.

Quem foi Amílcar Cabral?

Paulo Freire
Paulo Freire. Foto: Reprodução.

Filho de pais caboverdianos, Amílcar nasceu em 1924 na região de Bafatá, no centro da Guiné-Bissau. Já adulto, foi um dos líderes fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), no ano de 1956. Anos depois, ele e seu Partido seriam cruciais na derrota das forças coloniais do Exército Português.

A trajetória política de Amílcar Cabral está intrinsecamente ligada ao processo de construção da luta de libertação na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Ele foi parte fundamental do pensamento político e pedagógico do país desde o início da luta nos anos 1950 até o seu assassinato na Guiné-Conacri, em 20 de janeiro de 1973.

Dois anos depois de terminar os estudos universitários em Lisboa, no Instituto Superior de Agronomia, Amílcar recusou o cargo de professor assistente nesse mesmo instituto. Eventualmente ele foi convidado a retornar à Guiné-Bissau para trabalhar para o Ministério do Exterior. Em seu retorno, ele trabalhou como o principal responsável pelos serviços agrícolas e florestais locais.

Um dos seus objetivos era realizar o primeiro recenseamento agrícola de Guiné-Bissau. Essa experiência de contato direto com seus conterrâneos rurais, permitiu-lhe conhecer em profundidade a realidade social, econômica e política do território guineense.

Com o embate pela independência a todo vapor, Amílcar viajou pelo mundo em busca de apoio para a luta contra o colonialismo português na África. Cabral também publicou textos que se tornaram referências essenciais para o combate ao colonialismo e ao racismo em toda a diáspora Africana. Hoje, dos Estados Unidos ao Brasil, muitos dos seus textos são citados e estudados. Sua influência ainda pode ser sentida entre os membros da militância negra no mundo inteiro.

Apesar de não haver internet, nem meios de comunicação em massa como temos hoje, Amílcar era vastamente conhecido e suas ideias circulavam globalmente. Seu pensamento era tão difundido que, logo após seu assassinato, tanto o New York Times quanto o The Washington Post escreveram sobre sua morte. Em suas manchetes do dia 22 de janeiro de 1973, teriam dito que Amílcar Cabral foi considerado o líder mais brilhante e bem-sucedido da luta pela independência dos países africanos.

Amílcar Cabral com Fidel Castro
Amílcar Cabral com Fidel Castro. Foto: Reprodução.

Cabral era um humanista e, para ele, as coisas eram muito mais complexas do que simplesmente preto e branco. Mais de uma vez ele teria dito que sua guerra era contra as forças coloniais, não contra a população portuguesa:

“Nunca confundimos o colonialismo português com o Povo de Portugal, e temos feito tudo ao nosso alcance para preservar, apesar dos crimes cometidos pelos colonialistas portugueses, as possibilidades de cooperação, amizade, solidariedade e colaboração efetivas com o povo baseados na independência, igualdade de direitos e reciprocidade, quer para o progresso da terra, quer para o progresso do povo português”.

 

Como Freire via Cabral?

Em 2021, Paulo Freire celebraria 100 anos de vida caso ainda estivesse conosco.
Em uma entrevista realizada nos anos 90, quando questionado sobre Cabral, Freire respondeu:

“Em Cabral, aprendi muitas coisas, digo em Cabral também quer dizer com Cabral, aprendi muitas coisas. Também confirmei outras coisas que já suspeitava.”

Embora nunca tenha conhecido Cabral pessoalmente, o “educador revolucionário”, como ele o chamava, Freire visitou a Guiné-Bissau e dedicou muito tempo à compreensão dos ideais dos conceitos educacionais e revolucionários de Amílcar.

Questionado sobre o que alguns chamavam de visões utópicas de Cabral, Freire respondeu:

“A revolução que não sonha está condenada. Da mesma forma estão condenados os revolucionários que não sonham. A questão que surge do sonho e do sonhar é apenas saber como eles [revolucionários] irão lutar para tornar o sonho viável.”   

 

Ao descrever as perspectivas únicas de Amílcar, Freire o classifica como Profeta, pois, segundo ele: “um profeta ou profetisa é exatamente quem, vivendo hoje tão intensamente, pode adivinhar o que virá amanhã”.
Paulo Freire considerava a educação como uma prática de liberdade e, por conseguinte, de descolonização e independência.

Isso pode ser facilmente atestado analisando suas duas primeiras publicações, Educação como prática da liberdade (1967) e Pedagogia do oprimido (1970), e, em um sentido amplo, observando toda sua trajetória. A presença de Freire na Guiné-Bissau em 1974 foi decisiva na formação dessa visão, pois lhe deu a possibilidade de confrontar mais de perto suas próprias contradições e dúvidas no processo pedagógico.

Não sou iconoclasta, que enxerga as contribuições de Freire para o pensamento humano como inegáveis e irrefutáveis. No entanto, como vemos aqui, a influência de Amílcar em Freire e em sua obra é profunda. Como um ser humano curioso e inquisitivo, que continuamente questionava nossos propósitos como espécie nesse planeta, imagino que Freire gostaria que seu trabalho fosse debatido e levado adiante mesmo após sua passagem pela Terra.

Mural em Cabo Verde: “NA TERRA DE CABRAL” foto reprodução

A obra de Freire foi construída sobre muitas influências, pois o pensamento acadêmico é continuo e empírico. E isso é um fato maravilhoso. No entanto, o pensamento de Freire origina-se de filosofias e ideias centrais à experiência africana. Historicamente, esses ideais estão enraizados no pensamento africano desde os primórdios.

Como afro-brasileiro, tenho o dever de respeitar e apreciar à contribuição de Paulo Freire para a humanidade. Mas é também minha responsabilidade lembrar a todos que, de certa forma, por causa de Amílcar Cabral, Freire carregava um pouco da África em sua obra e seus livros.

*Uma versão deste texto foi apresentada pelo autor para conferência internacional: “Education and Social Justice Across Borders: Celebrating 100 Years of Paulo Freire” organizada pelo professor Joel Windle e ocorreu na Universidade de South Australia, em dezembro de 2021.


Referências:

Césaire, A., 2001. Discurso sobre o colonialismo . NYU Press

James, GG, 2013. Legado roubado. Simon e Schuster.

Arabnews. 2019. Um pequeno pedaço da Grécia no Egito. [ONLINE] Disponível em: https://www.arabnews.com/node/1505671/middle-east. [Acessado em 7 de dezembro de 2021].

Dalachanis, A., 2017. The Greek Exodus from Egypt: Diaspora Politics and Emigration, 1937-1962. Berghahn Books.

Freire, P., 1996. Pedagogia do oprimido (revisado). Nova York: Continuum.

Pereira, AA e Vittoria, P., 2012. A luta pela descolonização e as experiências de alfabetização na Guiné-Bissau: Amílcar Cabral e Paulo Freire. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), 25, pp.291-311.

Geledes. 2009. Amílcar Cabral – por Paulo Freire. [ONLINE] Disponível em: https://www.geledes.org.br/amilcar-cabral-por-paulo-freire/. [Acessado em 5 de dezembro de 2021].

A África não é um país. 2021. Amílcar Cabral e os limites da utopia. [ONLINE] Disponível em: https://africasacountry.com/2021/09/amilcar-cabral-and-the-limits-of-utopianism. [Acessado em 5 de dezembro de 2021].

Pereira, AA e Vittoria, P., 2012. A luta pela descolonização e as experiências de alfabetização na Guiné-Bissau: Amílcar Cabral e Paulo Freire. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), 25, pp.291-311.

Novo quadro. 2021. Como Amílcar Cabral moldou a pedagogia de Paulo Freire. [ONLINE] Disponível em: https://www.newframe.com/how-amilcar-cabral-shaped-paulo-freires-pedagogy/. [Acessado em 5 de dezembro de 2021].

Jacobino. 2019. The Socialist Agronomist Who Helped End Portuguese Colonialism. [ONLINE] Disponível em: https://www.jacobinmag.com/2019/10/amilcar-cabral-portuguese-colonialism-biography. [Acessado em 7 de dezembro de 2021].

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Guido Melo

Guido Melo é negro, nordestino e está radicado na Austrália desde 2003. Ele é um autor multilíngue afro-brasileiro-latino, poeta e facilitador de oficinas literárias baseado em Naarm (Melbourne). Atualmente cursando um Bacharelado em Letras e Mídias Digitais na Victoria University, seus textos podem ser encontradas nas revistas Meanjin , Overland, Kill Your Darlings, Peril, Colournary Magazine, Mantissa Poetry, Ascension Magazine, SBS Voices, SBS Portugues, Poesia Cordite dentre muitas outras publicações. Guido é integrante do Movimento de Alfabetização Sweatshop, colunista do Negrê e do Guia Negro News alem de ser colaborador das antologias Growing Up African in Australia (Black Inc., 2019) e do Livro Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021).

Artigos: 6

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